Bontemps no último verão; e esta, ouvindo dizer que se tratava de uma inépcia, em vez de pedir a Albertine que a cantasse, quando estava com visitas, substituiu-a por: Une chanson d'adieu sort des sources troublées
["Uma canção de adeus sai das fontes turvadas." (N. do T)]
Que por sua vez se tornou "uma chatice de Massenet com que a pequena nos martela os ouvidos".
Uma nuvem passava, eclipsava o sol, e eu via extinguir-se e cobrir-se de grisalha a recatada e folhuda cortina de vidro.
Os tabiques que separavam nossos banheiros (o de Albertine, todo igual, era um banheiro que mamãe, tendo outro na parte oposta do apartamento, jamais utilizara para não me fazer barulho) eram tão delgados que podíamos nos falar ao nos lavarmos cada qual no seu, prosseguindo uma conversa que só o ruído da água interrompia, nessa intimidade que, num hotel, muitas vezes permite a exigüidade do aposento e a aproximação das peças, mas que em Paris é bem rara.
De outras vezes, eu permanecia deitado, devaneando o tempo que quisesse, pois tinham ordem de nunca entrar em meu quarto sem que eu tivesse tocado a campainha, o que, devido ao jeito incômodo com que haviam colocado a pêra elétrica acima do meu leito, levava tanto tempo que, muitas vezes, cansado de procurar alcançá-la e contente por estar sozinho, eu ficava alguns instantes quase que readormecido. Não é que eu fosse absolutamente indiferente à estada de Albertine em nossa casa. A sua separação das amigas conseguia aliviar meu coração de novos sofrimentos. Mantinha-o num repouso, numa quase imobilidade, que o ajudavam a curar-se. Mas enfim essa tranqüilidade que minha amiga me proporcionava era antes apaziguamento da dor do que alegria. Não que não me permitisse gozar de numerosas alegrias, às quais a dor muito viva me havia fechado, mas essas alegrias, longe de devê-las a Albertine, que aliás eu já não achava bonita, com quem me aborrecia e a quem eu tinha a sensação nítida de não amar, eu as gozava, ao contrário, quando Albertine não estava comigo. Assim, para começar a manhã, não mandava que a chamassem logo, principalmente se fazia bom tempo. Durante alguns momentos, e na certeza de que ele me fazia mais feliz do que Albertine, eu permanecia em colóquio íntimo com a personagenzinha interior, cantante saudadora do sol e de que já falei. De todas as que compõem o nosso indivíduo, não são as mais aparentes que nos são mais essenciais. Em mim, quando a doença as tiver lançado uma por uma em terra, ficarão ainda umas duas ou três que terão vida mais dura que as outras, notadamente um certo filósofo que só está feliz quando descobre uma porção comum entre duas obras, entre duas sensações. Porém, às vezes tenho me perguntado se a última de todas não seria o homenzinho, muitíssimo parecido a outro que o oculista de Combray havia colocado atrás de sua vitrina para indicar o tempo que fazia, e que, tirando o capuz logo que fazia sol, voltava a pô-lo assim que chovia. Eu conhecia o egoísmo desse homenzinho: posso estar sofrendo de uma crise de sufocação, que só a queda da chuva acalmaria, mas ele pouco se importa e, às primeiras gotas tão impacientemente aguardadas, perdendo sua alegria, repõe o capuz de mau humor. Em compensação, creio que, na minha agonia, quando todos os meus outros "eus" estiverem mortos, se acontecer brilhar um raio de sol, a personagenzinha barométrica, enquanto eu estiver exalando meus últimos suspiros, irá sentir-se bem à vontade e retirará seu capuz para cantar: "Ah! finalmente faz bom tempo."
Eu chamava Françoise. Abria o fígaro. Procurava e acabava por verificar que nele não se encontrava um artigo, ou tido como tal, que eu enviara a esse jornal e que nada mais era, um pouco remodelada, do que a página, recentemente descoberta, outrora escrita no carro do doutor Percepied, ao contemplar os campanários de Martinville. Depois, lia a carta de mamãe. Ela achava esquisito, chocante, que uma moça morasse sozinha comigo. No primeiro dia, no momento de deixar Balbec, quando me vira tão infeliz e se inquietara por deixar-me sozinho, talvez minha mãe se sentisse feliz ao saber que Albertine viajaria conosco e ao ver que, com nossas malas, junto às quais eu passara a noite chorando no hotel de Balbec, tinham posto no "tortinho" as de Albertine, estreitas e pretas, que me pareciam ter a forma de ataúdes, sem que soubesse se iam trazer vida ou morte à minha casa. Mas nem havia pensado nisso, tão contente que estava, naquela manhã radiosa, por levar Albertine comigo depois do medo de ficar em Balbec. Mas a esse projeto, se no princípio minha mãe não lhe fora hostil (falando amavelmente à minha amiga, como uma mãe cujo filho acaba de ser gravemente ferido, e que é reconhecida à jovem namorada que dele cuidava com desvelo), passara a sê-lo desde que tal projeto se cumprira de todo e que a estada da moça se prolongava em nossa casa, e na ausência dela e de meu pai. Todavia, não posso dizer que minha mãe tenha me manifestado alguma vez essa hostilidade. Como antigamente, quando deixara de ousar censurar-me o meu nervosismo e minha preguiça, agora sentia escrúpulos que eu talvez não tenha adivinhado ou desejado adivinhar no momento em se arriscar, fazendo algumas reservas acerca da moça com quem lhe dissera que ia me casar, a entristecer a minha vida, a me tornar mais tarde menos devotado à minha mulher, a semear talvez, para quando ela própria já não existisse, o remorso de a ter desgostado ao casar com Albertine. Mamãe preferia parecer aprovar uma escolha da qual sentia não poder remover-me. Mas todos os que a viam por essa época disseram-me que, à dor de ter perdido a mãe, acrescentava-se um ar de constante preocupação. Essa contenção de espírito, essa discussão interior, davam a mamãe um grande calor nas têmporas, e ela abria constantemente as janelas para se refrescar. Mas não chegava a tomar qualquer decisão, por medo de me "influenciar" num mau sentido e de estragar aquilo que julgava ser a minha felicidade.
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