O extraordinário é que daquele sarau, enfim não tão antigo, a Sra. de Guermantes só se lembrasse de sua toalete e tivesse esquecido uma coisa que no entanto, conforme veremos, deveria ter grande importância para ela. Parece que nas pessoas de ação, e os mundanos são pessoas de ação (minúsculas, microscópicas, mas enfim pessoas de ação), o espírito esgotado pela atenção naquilo que há de ocorrer dentro de uma hora, só confia muito pouco à memória. Muitas vezes, por exemplo, não era para despistar e parecer não ter se enganado, que o Sr. de Norpois, quando lhe falavam de prognósticos que ele havia emitido a respeito de uma aliança alemã que nem sequer fora concluída, dizia:
- Devem estar enganados, não me recordo absolutamente, isto não parece coisa minha, pois nesse tipo de conversa sou sempre muito lacônico e jamais teria predito o sucesso de golpes espetaculares, que em geral não passam de cabeçadas e habitualmente degeneram em atos de violência. É inegável que, num futuro remoto, poderia efetuar-se uma aproximação franco-alemã, a qual seria muito vantajosa para os dois países, e dela a França não tiraria só desvantagens, creio; mas jamais falei sobre tal assunto, porque o fruto ainda não está maduro e, se querem a minha opinião, penso que, ao pedirmos a nossos velhos inimigos que convolem conosco em justas bodas, correríamos o risco de um tremendo fracasso e só receberíamos bordoadas. -
Dizendo isto, o Sr. de Norpois não mentia, simplesmente se esquecera. De resto, a gente se esquece depressa daquilo que não pensou com profundidade, do que nos foi ditado pela imitação e pelas paixões circundantes. Elas mudam, e com elas modifica-se a nossa recordação. Ainda mais que os diplomatas, os políticos não se lembram do ponto de vista que adotaram em certa ocasião, e algumas de suas palinódias se referem menos a um excesso de ambição do que a uma falta de memória. Quanto às pessoas mundanas, estas lembram-se de pouca coisa.
A Sra. de Guermantes afirmou-me que, no sarau ao qual comparecera de vestido vermelho, já não se lembrava que ali estivera a Sra. de Chaussepierre, que certamente eu me enganava. Ora, sabe Deus no entanto se, desde então, os Chaussepierre não ocuparam o espírito do duque e até da duquesa! Eis o motivo. O Sr. de Guermantes era o mais antigo vice-presidente do Jockey quando o presidente faleceu.
Certos membros do clube que não têm relações e cujo único prazer é dar bolas pretas às pessoas que não os convidam, fizeram campanha contra o duque de Guermantes, o qual, certo de ser eleito e bem negligente quanto a essa presidência que valia muito pouco relativamente à sua posição mundana, não cuidou de nada. Ressaltaram que a duquesa era dreyfusista (no entanto, o Caso Dreyfus já se encerrara há muito tempo, mas vinte anos depois ainda se falava nele, e ela só o era havia dois anos), recebia os Rothschild, que se favoreciam demais desde algum tempo dos grandes potentados internacionais, como o duque de Guermantes, que era meio alemão. A campanha encontrou um terreno bastante propício, pois os clubes invejam muito as pessoas em destaque e detestam as grandes fortunas. A de Chaussepierre não era pequena, mas não dava para ofuscar ninguém; ele não gastava um tostão, o apartamento do casal era modesto, a mulher andava vestida de lã preta. Louca por música, dava muitas reuniões pequenas para as quais eram convidadas muito mais cantoras do que à casa dos Guermantes. Mas ninguém falava nelas, tudo isso se passava sem refrescos, até o marido estava ausente, na obscuridade da rua de Ia Chaise. Na ópera, a Sra. de Chaussepierre passava despercebida, sempre na companhia de pessoas cujo nome evocava o meio mais "ultra" da intimidade de Carlos X, mas pessoas apagadas, pouco mundanas. No dia da eleição, para surpresa geral, a obscuridade triunfou sobre o esplendor: Chaussepierre, segundo vice-presidente, foi eleito presidente do Jockey, e o duque de Guermantes levou carona, isto é, permaneceu como primeiro vice-presidente. Claro que ser presidente do Jockey não representa muita coisa para os príncipes da mais alta estirpe como eram os Guermantes. Mas não sê-lo quando chegou a vez, ver-se preterido por um Chaussepierre cuja mulher Oriane não só não cumprimentava dois anos antes, como chegava a se mostrar ofendida de ser cumprimentada por aquele morcego desconhecido era duro para o duque. Ele pretendia estar acima desse fracasso, assegurando aliás que era à sua velha amizade a Swann que o devia.
1 comment