- Mas a senhora também estava de sapatos tão bonitos, ainda eram de Fortuny?

- Não, eu sei do que está falando, é um couro dourado de cabrito que descobrimos em Londres, dando um passeio com Consuelo em Manchester. Era extraordinário. Nunca pude compreender de que forma era dourado, dir-se-ia uma pele de ouro; era apenas isto, com um pequeno diamante no meio. A pobre duquesa de Manchester está morta, mas, se lhe agrada, escreverei à Sra. de Warwick ou à Sra.

Marlborough para que elas tentem descobrir outros idênticos. Pergunto-me se eu mesma ainda não terei dessa pele. Talvez seja possível mandar fazê-la aqui. Vou dar uma olhada esta noite e lhe mandarei informar.

Como eu procurasse, na medida do possível, deixar a duquesa antes que Albertine regressasse, ocorria muitas vezes que encontrava àquela hora no pátio, ao sair da Casa da Sra. de Guermantes, o Sr.

de Charlus e Morel, que iam tomar chá na casa de Jupien, favor supremo para o barão! Não cruzava com eles todos os dias, mas eles ali compareciam diariamente. Aliás, é de se notar que a constância de um hábito de ordinário está relacionada com o que existe de absurdo nele. As coisas brilhantes em geral só são feitas de modo imprevisto. Mas as vidas insensatas, em que o próprio maníaco se priva de todos os prazeres e se inflige os maiores males, estas vidas são as que menos mudam. A cada dez anos, caso tivéssemos curiosidade para tanto, voltaríamos a encontrar o desgraçado dormindo às horas em que poderia viver, saindo às horas em que não há quase outra coisa a fazer senão deixar-se assassinar nas ruas, bebendo gelados quando está com calor, sempre se curando de uma gripe. Bastaria um pequeno movimento de energia, um único dia, para mudar isto de uma vez por todas. Porém justamente essas vidas são de hábito o apanágio de seres incapazes de energia. Os vícios são um outro aspecto dessas existências monótonas, que a força de vontade bastaria para tornar menos atrozes. Ambos os aspectos podiam ser igualmente considerados quando o Sr. de Charlus ia todos os dias, na companhia de Morel, tomar chá na casa de Jupien. Uma única tempestade havia marcado esse costume cotidiano. Tendo a sobrinha do coleteiro dito certo dia a Morel:

- Pois é, venha amanhã que eu lhe pagarei o chá.

O Sr. de Charlus achara com razão a frase bem vulgar para uma pessoa de quem contava fazer sua quase nora; mas, como gostava de constranger e se embriagava com a própria cólera, em vez de dizer simplesmente a Morel que desse à moça uma lição de boas maneiras, todo o regresso passou-se em cenas violentas. No tom mais insolente, mais orgulhoso:

- O toque, pelo visto, não é forçosamente aliado ao "tato"; e portanto impediu em você o desenvolvimento normal do olfato, já que tolerou que essa expressão fétida de pagar o chá, a quinze cêntimos suponho, venha trazer-me às régias narinas o seu odor de dejetos! Quando, em minha casa, terminou um solo de violino, alguma vez viu que o recompensavam com um peido em vez de um aplauso frenético, ou com um silêncio ainda mas eloqüente, pois é feito do medo de não poder reter, não aquilo com que sua noiva nos prodigalizou, mas o soluço que lhe sobe aos lábios?

Quando um funcionário se vê infligido de tais censuras pelo seu chefe, invariavelmente é demitido no dia seguinte. Ao contrário, nada teria sido mais cruel ao Sr. de Charlus do que despedir Morel e, receando mesmo ter ido um pouco longe demais, pôs-se a fazer, sobre a moça, elogios minuciosos, cheios de gosto, involuntariamente semeados de impertinências.

- Ela é encantadora. Como você é músico, penso que ela o seduziu pela voz, que é muito linda nas notas altas, onde parece esperar o acompanhamento do seu si sustenido.