Nem mesmo podia resolver-se a impedir que eu conservasse Albertine provisoriamente na casa. Não desejava mostrar-se mais severa que a Sra.

Bontemps, que era a maior interessada naquilo e não lhe via inconveniente algum, o que muito surpreendia minha mãe. Em todo caso, lamentava ter sido obrigada a nos deixar ambos sozinhos, partindo justo naquela ocasião para Combray, onde poderia ter de ficar (e de fato ficou) longos meses, durante os quais minha tia precisou incessantemente dela dia e noite. Lá, tudo lhe foi facilitado graças à bondade e ao devotamento de Legrandin que, não recuando diante de nenhum sacrifício, adiou semana após semana o seu regresso a Paris, sem conhecer muito a minha tia, simplesmente, em primeiro lugar, porque fora amiga de sua mãe, e depois porque sentiu que a enferma, condenada, gostava de seus cuidados e não podia passar sem ele. O esnobismo é uma grave doença da alma, porém localizada, e que não a estraga de todo. Entretanto, eu, ao contrário de mamãe, estava bem feliz com a sua ida para Combray, sem a qual teria receado (sem poder dizer a Albertine que a ocultasse) que ela descobrisse a sua amizade com a Srta. Vinteuil. Para minha mãe, isso teria sido um obstáculo absoluto não só a um casamento, do qual, aliás, pedira-me que não falasse ainda em definitivo à minha amiga, e cuja idéia erame cada vez mais intolerável, mas também a que Albertine passasse algum tempo em nossa casa. A não ser esse motivo tão grave e que ela ignorava, mamãe, pelo duplo efeito da imitação edificante e libertadora de minha avó, admiradora de George Sand, para quem a virtude consistia na nobreza do coração, e, por outro lado, de minha própria influência corruptora, era agora indulgente para com mulheres sobre cuja conduta se mostrara severa antigamente, ou mesmo nos dias de hoje, se se tratasse de suas amigas burguesas de Paris ou de Combray, mas de quem eu lhe gabava a grande alma e às quais ela perdoava em grande parte porque gostavam muito de mim. Apesar de tudo, e mesmo sem falar na questão das conveniências, creio que Albertine não teria tolerado mamãe, que conservara de Combray, de minha tia Léonie, de todos os parentes, hábitos de ordem de que minha amiga não tinha a menor noção. Não teria fechado uma porta e, em compensação, não ficaria mais constrangida que um cão ou um gato de entrar quando uma porta estivesse aberta. Seu encanto um pouco incômodo era, assim, o de estar na casa menos como uma moça do que feito um animal doméstico que entra numa sala; que sai, que se encontra em toda parte onde não é esperado, e que vinha; era para mim um repouso profundo; jogar-se em minha cama a meu lado, arrumando um lugarzinho de onde não se mexia mais, sem incomodar, como o teria feito uma pessoa. Entretanto, acabou por dobrar-se às minhas horas de sono, e evitou não só entrar no meu quarto, mas fazer barulho antes que eu tivesse tocado a campainha. Foi Françoise quem impôs essas regras. Era dessas criadas de Combray que conhecem o valor do patrão e acham que o menos que podem fazer é exigir que tenham com ele todas as atenções que julgam lhe serem devidas.

Quando um visitante estranho dava a Françoise uma gorjeta para que a dividisse com a criada de cozinha, o doador mal tinha tempo de entregá-Ia, e já Françoise, com uma rapidez, uma discrição e uma energia iguais, passara a lição à criada de cozinha, que vinha agradecer não com meias palavras, mas francamente, em voz alta, como Françoise lhe havia dito que era necessário fazer.

O cura de Combray não era um gênio, mas ele também sabia o que se devia fazer. Sob sua orientação, a filha dos primos protestantes da Sra. Sazerat se convertera ao catolicismo, e a família tivera um comportamento exemplar para com ele, ao se tratar de um casamento com um nobre de Méséglise.

Os pais do rapaz escreveram, para pedir informações, uma carta bastante desdenhosa e onde era depreciada a origem protestante da moça. O cura de Combray respondeu em tom tão enérgico, que o nobre de Méséglise, curvo e prosternado, escreveu outra carta bem diferente, na qual solicitava, como o mais precioso favor, unir-se à jovem.

Françoise não teve mérito em fazer respeitar o meu sono por Albertine. Estava imbuída da tradição. Por um silêncio que manteve, ou pela resposta peremptória que deu a um pedido de entrar no meu quarto ou de me perguntar alguma coisa, que inocentemente formulara Albertine, esta compreendeu, com assombro, achar-se em um mundo estranho, de costumes desconhecidos, regulados por leis de vida que ninguém podia pensar em transgredir. Já tivera um primeiro pressentimento daquilo em Balbec, mas em Paris não tentou sequer resistir e esperou pacientemente, todas as manhãs, o meu toque de campainha para ter coragem de fazer barulho.

Aliás, a educação que lhe deu Françoise foi salutar até mesmo para a nossa velha criada, acalmando aos poucos os gemidos que, desde a nossa volta de Balbec, ela não deixara de soltar. Pois, no momento de subir para o trem, percebera que havia esquecido de despedir-se da "governanta" do hotel, criatura bigoduda que supervisionava os andares, mal conhecia Françoise, mas fora relativamente cortês com ela. Françoise queria porque queria voltar, descer do trem, regressar ao hotel, fazer suas despedidas à governanta e só partir no dia seguinte. O juízo e sobretudo o meu súbito horror a Balbec me impediram de conceder-lhe essa graça, mas ela cultivara um mau-humor doentio e arrebatado que a mudança de clima não fora bastante para fazer abrandar e que se prolongou em Paris.