Esses defeitos eram completados por outros mais graves; um dia em que eu falava daquele rapaz tão entendido em assuntos de corridas, jogos e golfe, e tão inculto quanto ao resto, que eu encontrara com o pequeno grupo em Balbec, Andrée começou a fazer troça:
- Sabe? O pai dele cometeu um roubo, quase foi processado. Tornaram-se ainda mais petulantes, mas eu me divirto contando o caso a todos. Gostaria que me processassem por denúncia caluniosa. Que belo depoimento eu faria! -
Seus olhos faiscavam. Ora, eu soube que o pai não cometera nenhum ato desabonador, que Andrée o sabia tão bem como qualquer um. No entanto, julgara-se desprezada pelo filho, havia procurado algo que o pudesse prejudicar, cobri-lo de vergonha, inventara todo um romance de depoimentos que imaginara e ela seria chamada a fazer e, à força de repetir os detalhes dessa invenção, talvez ela própria ignorasse que tudo aquilo não era verdade.
Tal como se havia tornado (e até sem seus ódios curtos e doidos), não teria desejado vê-la, nem que apenas fosse por causa daquela suscetibilidade malévola que rodeava de um cinturão acre e glacial a sua verdadeira índole, mais calorosa e melhor. Porém as informações que só ela podia me dar sobre a minha amiga interessavam-me demais para que eu desprezasse uma tão rara ocasião para sabê-las.
Andrée entrava, fechava a porta atrás de si; elas haviam encontrado uma amiga, e Albertine jamais me falara dela.
- Que foi que conversaram?
- Não sei, pois aproveitei que Albertine não estava sozinha para ir comprar lã.
- Comprar lã?
- Sim, foi Albertine quem me pediu.
- Mais uma razão para não ir, era talvez de propósito para afastá-la.
- Mas ela me havia pedido antes de encontrar a amiga.
- Ah! - respondia eu, recobrando o fôlego. E logo a suspeita me assaltava de novo: - Mas quem sabe se ela não tinha marcado um encontro de antemão com essa amiga e não combinara um pretexto para estar segura de ficar sozinha quando quisesse?-Além disso, não estaria eu certo de que a velha hipótese (a de que Andrée só me dizia a verdade) fosse a boa? Andrée talvez estivesse mancomunada com Albertine. Amor, dizia eu comigo em Balbec, a gente tem por uma pessoa cujos atos principalmente nos despertam o ciúme; sentimos que, se ela no-los contasse todos, talvez nos curássemos facilmente de amar. O ciúme, por mais habilmente dissimulado que seja por aquele que o sente, é bem depressa descoberto por aquela que o inspira, e que por sua vez usa de habilidade. Ela procura nos iludir acerca de que nos possa tornar infelizes, e o consegue, pois, àquele que não está prevenido, por que razão uma frase insignificante revelaria as mentiras que ela esconde? Não a distinguimos das outras; dita com temor, é ouvida sem atenção. Mais tarde, quando estivermos a sós, voltaremos àquela frase, e ela não nos parecerá perfeitamente adequada à realidade. Mas essa frase, lembramo-nos bem dela? Parece nascer em nós, espontaneamente, a seu respeito e quanto à exatidão de nossa lembrança, uma dúvida do tipo daquelas que fazem com que, no decurso de certos estados nervosos, a gente nunca possa lembrar se correu ou não o ferrolho, e isto tanto na qüinquagésima como na primeira vez; dir-se-ia que se pode recomeçar indefinidamente o ato sem que ele jamais seja acompanhado de uma lembrança exata e libertadora. Pelo menos podemos fechar a porta uma qüinquagésima primeira vez. Ao passo que a frase inquietante está no passado, numa audição incerta, cuja renovação não depende de nós. Então, exercemos nossa atenção sobre outras pessoas, que não escondem nada, e o único remédio, que absolutamente não queremos, seria ignorar tudo para não ter o desejo de saber melhor. Logo que o ciúme é descoberto, é considerado por aquela de quem é o objeto como uma desconfiança que autoriza a traição. Além disso, para tentar saber alguma coisa, nós é que tomamos a iniciativa de mentir, de enganar. Andrée e Aimé bem que nos prometem não dizer nada, mas o farão? Bloch não pôde prometer nada, visto que nada sabia, e, por pouco que converse com cada um dos três, Albertine, com a ajuda do que Saint-Loup teria denominado "cotejo", saberá que lhe mentimos quando pretendíamos ser indiferentes a seus atos e moralmente incapazes de mandá-la vigiar. Assim ocorrendo-relativamente ao que fazia Albertine-, à minha infinita dúvida habitual, indeterminada demais para não ser indolor, e que era para o ciúme o que são para o desgosto esses começos de esquecimento em que o sossego nasce do vago-o pequeno fragmento de resposta que me trazia Andrée colocava de imediato novas perguntas; eu não conseguira, ao explorar uma parcela da grande zona que se estendia ao meu redor, mais que afundar para dentro dela aquele incognoscível que é para nós, quando procuramos efetivamente nos representá-la, a vida real de uma outra pessoa. Continuava a interrogar Andrée, enquanto Albertine, por discrição e para me deixar (tê-lo-ia adivinhado?) todo o lazer de questionar sua amiga, prolongava o ato de despir-se no quarto.
- Creio que o tio e a tia de Albertine gostam muito de mim - disse eu estouvadamente a Andrée, sem pensar no seu temperamento. E logo vi o seu rosto viscoso alterar-se como um xarope azedo, parecendo turvar-se para sempre.
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