de Charlus, uma insuspeitada e imensa bondade, mesclada a durezas que ela não conhecia. Assim, não pudera fazer um juízo mais definido sobre o que eram, cada um em si mesmo, o violinista e seu protetor, do que eu sobre Andrée, a quem no entanto via todos os dias, e sobre Albertine, que morava comigo.
Nas noites em que esta última não me lia em voz alta, ela tocava piano para mim ou jogávamos partidas de damas, ou conversávamos, jogo e conversa que eu interrompia para beijá-la. Nossas relações eram de uma simplicidade que as tornava repousantes. O próprio vazio de sua vida conferia a Albertine uma espécie de solicitude e de obediência para as únicas coisas que eu exigia dela. Por detrás dessa jovem, como detrás da luz purpurina que caía aos pés de minhas cortinas em Balbec, enquanto ribombava o concerto dos músicos, nacaravam-se as ondulações azuladas do mar. Com efeito, não era ela (no fundo de quem residia de modo habitual uma idéia de mim tão familiar que, depois de sua tia, eu era talvez a pessoa que ela menos distinguia de si mesma) a mocinha que eu vira pela primeira vez em Balbec, sob sua boina achatada, com seus olhos insistentes e risonhos, desconhecida ainda, delgada como uma silhueta recortada contra o fundo das ondas? Essas efígies que se conservam intactas na memória, quando as reencontramos, espantamo-nos com sua dissemelhança da criatura que já conhecemos; compreendemos então qual o trabalho de modelagem que o hábito cumpre diariamente. No encanto que Albertine possuía em Paris, junto à minha lareira, vivia ainda o desejo que me inspirara o séquito insolente e florido que se desenrolara ao longo da praia e, como Rachel conservava para Saint-Loup, mesmo depois que ele a fez largar o palco, o prestígio da vida teatral, naquela Albertine enclausurada em minha casa, longe de Balbec, de onde a trouxera precipitadamente, subsistiam a emoção, a desordem social, a vaidade inquieta, os desejos fugidios da vida dos banhos de mar. Ela estava tão bem engaiolada que até em certas noites eu não lhe mandava pedir que trocasse o seu quarto pelo meu, ela, a quem outrora todos seguiam, que me dava tanto trabalho para alcançá-la quando disparava na sua bicicleta, e que o próprio ascensorista não lograva me trazer de volta, não me dando qualquer esperança de que ela viesse, e que eu no entanto esperava a noite inteira. Pois não fora Albertine, diante do hotel, como uma grande atriz da praia em chamas, excitando ciúmes quando caminhava por aquele teatro da natureza, sem falar com ninguém, dando encontrões nos clientes habituais, dominando as amigas, e não era essa atriz tão cobiçada que, retirada por mim de cena, fechada em minha casa, a salvo dos desejos de todos, que de ora em diante podiam procurá-la em vão, ora no meu quarto, ora no seu, onde ela se entregava a algum trabalho de desenho ou cinzeladura?
Sem dúvida, nos primeiros dias de Balbec, Albertine parecia estar num plano paralelo àquele em que eu vivia, mas que se aproximara (quando eu estivera na casa de Elstir), até se juntarem ambos, à medida que se estreitavam nossas relações, em Balbec, em Paris, depois de novo em Balbec. Além disso, entre os dois quadros de Balbec, o da primeira e o da segunda temporadas, compostos das mesmas vivendas de onde saíam as mesmas jovens diante do mesmo mar, quanta diferença! Nas amigas de Albertine da segunda temporada, tão bem conhecidas de mim, de qualidades e defeitos tão visivelmente gravados em suas fisionomias, conseguiria eu reencontrar aquelas frescas e misteriosas desconhecidas que outrora não podiam, sem que me batesse o coração, fazer ranger na areia a porta de seus chalés e roçar de passagem as tamargueiras frementes? Seus grandes olhos tinham se reabsorvido desde então, sem dúvida porque haviam deixado de ser crianças, mas também porque essas deslumbrantes desconhecidas, atrizes do romanesco primeiro ano e sobre quem eu não cessava de pedir informações, não mais tinham mistérios para mim. Obedientes aos meus caprichos, haviam se tornado, para mim, simples moças em flor, das quais não me sentia mediocremente orgulhoso de ter colhido, escondido de todos, a mais bela rosa.
Entre os dois cenários de Balbec, tão diversos um do outro, havia o intervalo de vários anos em Paris, sobre cujo longo percurso se colocavam tantas visitas de Albertine.
Eu a via, nos diferentes anos de minha vida, ocupando, em relação a mim, posições diversas que me faziam sentir a beleza dos espaços interferidos, aquele longo tempo que se passara sem que eu a visse, e sobre cuja profundeza diáfana a rósea pessoa diante de mim se modelava com misteriosas sombras e poderoso relevo. Este, aliás, era devido à superposição não só das imagens sucessivas que Albertine fora para mim, mas também das grandes qualidades de inteligência e coração, dos defeitos de caráter, uns e outros insuspeitados de mim, que Albertine, numa germinação, numa multiplicação de si mesma, numa florescência carnuda de cores sombrias, acrescentara a uma natureza antigamente quase nula, e agora difícil de aprofundar. Pois as criaturas, mesmo as que, de tanto sonharmos com elas, nos pareciam apenas uma imagem, uma figura de Benozzo Gozzoli que se destacasse sobre um fundo esverdeado e cujas únicas variações estávamos dispostos a acreditar se referissem ao ponto em que nos colocáramos para contemplá-la, à distância que nos afastava dela, à iluminação, essas criaturas, ao passo que mudam em relação a nós, igualmente mudam em si mesmas; e houvera enriquecimento, solidificação e acréscimo de volume na figura outrora simplesmente recortada contra o mar. De resto, não era somente o mar do fim do dia que vivia para mim em Albertine, mas, por vezes, a sonolência do mar na areia pelas noites de luar. De fato, algumas vezes, quando eu me levantava para procurar um livro no gabinete de meu pai, minha amiga, que me pedira licença para se deitar durante a minha ausência, achava-se tão cansada devido à longa excursão que fizera de manhã e de tarde, ao ar livre, que, mesmo se eu demorasse um instante apenas fora do quarto, ao voltar encontrava-a adormecida e não a despertava. Estendida ao comprido em minha cama, numa atitude de um natural que não se teria podido inventar, parecia-me uma longa haste em flor que tivessem colocado ali; e de fato assim era; o poder de devanear, que eu só possuía em sua ausência, reencontrava-o nesses instantes junto dela, como se, dormindo, ela se tornasse uma planta. Desse modo seu sono realizava, em certa medida, a possibilidade do amor; sozinho, eu podia pensar nela, mas ela me faltava, não a possuía. Presente, eu lhe falava, mas estava por demais ausente de mim mesmo para poder pensar.
Quando ela dormia, eu já não precisava falar, sabia que não era mais observado por ela, não tinha mais necessidade de viver à superfície de mim mesmo. Fechando os olhos, perdendo a consciência, Albertine se despojara, um após outro, de seus diferentes caracteres de humanidade que me haviam decepcionado desde o dia em que a conhecera. Ela só estava animada da vida inconsciente dos vegetais e das árvores, vida mais diversa da minha, mais estranha e que, no entanto, me pertencia mais.
Seu eu não fugia em todos os momentos, como quando conversávamos, pelas saídas do olhar e do pensamento inconfesso. Recolhera a si própria tudo o que, lhe pertencendo, estava do lado de fora; refugiara-se, enclausurada, resumida, em seu corpo. Tendo-a sob o meu olhar, em minhas mãos, tinha eu aquela impressão de possuí-la por inteiro, o que não ocorria quando ela estava acordada. Sua vida era-me submissa, exalava para mim o seu leve sopro. Eu escutava aquela murmurante emanação misteriosa, suave como um zéfiro marinho, fascinante como esse luar que era o seu sono. Enquanto este durava, eu podia sonhar com ela e todavia observá-la, e, quando ele se tornava mais profundo, tocá-la e beijá-la.
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