Compreende-se, a rigor, que as cartas que alguém nos escreve sejam mais ou menos iguais entre si e desenhem uma imagem bem diversa da pessoa que se conhece para que constituam uma segunda personalidade. Porém, quanto é mais estranho que uma mulher seja colada, como Rosita e Doodica,

[Rosita e Doodica: gêmeas siamesas, a primeira de nome verdadeiro Radica (e não Rosita), separadas em 1902 pelo professor Doyen. (N. do T)] a outra mulher, cuja beleza diversa leva a induzir um outro caráter, e que para ver uma seja necessário colocarmo-nos de perfil, e para ver a outra, de frente. O

rumor de sua respiração, tornando-se mais forte, podia dar a ilusão do ofegante prazer e, quando o meu chegava ao fim, podia beijá-la sem interromper o seu sono. Nesses momentos, parecia-me acabar de possuí-la mais completamente, como uma coisa inconsciente e sem resistência da natureza muda. Não me inquietavam as palavras que ela às vezes deixava escapar ao dormir; o seu sentido me fugia, e, além disso, fosse qual a pessoa desconhecida a que se referissem, era sobre a minha mão, meu rosto, que sua mão, por vezes animada de um leve estremecimento, crispava-se por um instante. Eu fruía o seu sono com um amor desinteressado e calmante, assim como ficava horas a escutar a arrebentação das ondas. Talvez seja necessário que as criaturas se mostrem capazes de nos fazer sofrer muito, para que, nas horas de remissão, nos proporcionem o mesmo alívio que a natureza. Não tinha de lhe responder como quando conversávamos, e, mesmo que me calasse, como fazia também quando ela falava, ao ouvi-la falar eu não penetrava tão profundamente nela. Continuando a ouvi-la, a recolher de instante em instante o murmúrio tranqüilizador, como uma brisa imperceptível de seu hálito puro era toda uma existência fisiológica que estava diante de mim e para mim; tanto tempo como antigamente ficava deitado na praia, ao luar, teria ficado ali a contemplá-la, a escutá-la. Às vezes, dir-se-ia que o mar se encapelava, que a tempestade se fazia sentir até na baía, e eu me punha, como ela, a escutar o ronco do seu sopro, que rugia.

Às vezes, quando ela sentia muito calor, tirava, já quase dormindo, o seu quimono, e o atirava numa poltrona. Enquanto ela dormia, eu dizia comigo que todas as suas cartas estavam no bolso interno desse quimono onde as punha sempre. Uma assinatura, um encontro marcado seriam o bastante para provar uma mentira ou dissipar uma suspeita. Quando sentia ser bem profundo o sono de Albertine, afastando-me dos pés da sua cama onde a contemplava há muito sem fazer um só movimento, eu arriscava um passo, tomado de ardente curiosidade, sentindo o segredo dessa vida oferecido, frouxo e sem defesa naquela poltrona. Talvez também desse aquele passo porque contemplar sem se mexer acaba por tornar-se cansativo. E assim, na ponta dos pés, voltando-me sem cessar para ver se Albertine não acordava, eu ia até a poltrona. Ali parava, ficava longo tempo a olhar o quimono como tinha estado longo tempo a contemplar Albertine. Mas (e talvez tenha sido um erro) nunca toquei no quimono, nem coloquei a mão no bolso ou olhei as cartas. Por fim, vendo que não me resolvia, desandava o caminho com passos de lã, voltava para junto da cama de Albertine e me punha de novo a olhá-la dormindo, ela que não me dizia nada, ainda que eu visse no braço da poltrona aquele quimono que talvez me dissesse muitas coisas. E, assim como as pessoas alugam, por cem francos diários, um quarto no hotel de Balbec a fim de respirar o ar marinho, eu achava muito natural gastar mais do que isso com ela, pois tinha o seu hálito junto à face, em sua boca, que contra a minha eu entreabria e onde pela minha língua passava a sua vida.

Mas a este prazer de vê-la dormir, e que era tão bom quanto senti-la viver, um outro punha-lhe fim, e era o de vê-la despertar. A um grau mais profundo e misterioso, era o próprio prazer de que ela morasse em minha casa. Sem dúvida era-me doce tal prazer, à tarde, quando ela descia do carro, que fosse ao meu apartamento que ela regressasse. Era-o mais ainda que, quando do fundo do sono ela subisse os últimos degraus da escadaria dos sonhos, que fosse em meu quarto que ela renascesse para a consciência e para a vida, que ela se indagasse por um instante "onde estou?", e, vendo os objetos de que estava cercada, a lâmpada cuja luz fazia quase imperceptivelmente piscar os olhos, pudesse responder que estava em sua casa ao constatar que despertava na minha. Nesse primeiro momento delicioso de incerteza, parecia-me tomar de novo, mais completamente, posse de Albertine, visto que em vez de ela, depois de ter saído, entrar em seu quarto, era o meu quarto, assim que fosse reconhecido por Albertine, que ia encerrá-la, contê-la, sem que os olhos de minha amiga manifestassem qualquer perturbação, permanecendo tão calmos como se ela não tivesse dormido. A hesitação de despertar, revelada pelo seu silêncio, não o era pelo olhar.

Reencontrava a palavra, e dizia:

- Meu Marcel – ou - Meu querido-, ambos seguidos de meu nome de batismo, o qual, atribuindo ao narrador o mesmo prenome do autor deste livro, daria: "Meu Marcel", "Meu querido Marcel". Desde então, eu já não permitia que, em família, os parentes, chamando-me também "querido", tirassem às palavras deliciosas que me dizia Albertine o privilégio de serem únicas.