Pois aos poucos eu ia começando a me parecer com todos os parentes, com meu pai que de um modo bem diverso de mim, é claro, pois se as coisas se repetem, é com grandes variações se interessava tanto pelo tempo que fazia; e não apenas com ele, mas cada vez mais com a tia Léonie. Sem isso, Albertine não teria podido ser para mim senão um motivo para sair, para não deixá-la ir só, sem meu controle. Minha tia Léonie, inteiramente beata, e com a qual eu teria jurado não ter um só ponto em comum, eu tão apaixonado por prazeres, totalmente diverso na aparência daquela maníaca que jamais conhecera nenhum e rezava o terço o dia inteiro, eu que sofria por não poder realizar uma vida literária, ao passo que ela tinha sido a única pessoa da família que ainda não pudera compreender que o ato da leitura era algo diverso de passar o tempo e de "divertir-se", o que tornava, mesmo no tempo da Páscoa, a leitura permitida no domingo, quando toda ocupação séria é proibida, a fim de que eu seja santificado unicamente pela oração. Ora, apesar de encontrar todos os dias a causa disso numa indisposição particular, o que me fazia tantas vezes permanecer deitado era uma criatura (não Albertine, não uma mulher que eu amava), uma criatura com mais força sobre mim do que um ser amado, era, transmigrada em mim, despótica a ponto de fazer calar às vezes as minhas ciumentas suspeitas, ou pelo menos ir verificar se eram fundadas ou não, era a minha tia Léonie. Não bastava que eu me parecesse exageradamente com meu pai, a ponto de não me contentar em consultar o barômetro como ele, mas de tornar-me eu próprio um barômetro vivo, não era bastante que me deixasse comandar pela tia Léonie para ficar observando o tempo, mas do quarto e até da minha cama?
Eis que também agora falava a Albertine, ora como a criança que eu fora em Combray falando a minha mãe, ora como a minha avó me falava. Quando ultrapassamos uma certa idade, a alma da criança que fomos e a alma dos mortos de que saímos vêm jogar-nos, às mancheias, suas riquezas e seus maus destinos, exigindo colaborar nos novos sentimentos que experimentamos e nos quais, apagando sua antiga efígie, nós os refundimos em uma criação original. Assim todo o meu passado, desde os anos mais remotos, e para além deles o passado de meus pais, misturavam ao meu amor impuro por Albertine a doçura de um carinho a um tempo filial e maternal. Devemos receber, a partir de um dado momento, todos os nossos parentes chegados de tão longe e assentados ao nosso redor.
Antes que Albertine me obedecesse e me deixasse tirar-lhe os sapatos, eu lhe entreabria a camisa. Os dois pequenos seios, empinados, eram tão redondos que pareciam menos fazer parte integrante de seu corpo do que terem amadurecido ali como dois frutos; e seu ventre (dissimulando o lugar que no homem se enfeia, como numa estátua desvendada, o grampo que ficou gravado) fechava-se na junção das coxas por duas valvas de uma curvatura tão suave, tão repousante, tão claustral, como a do horizonte quando o sol já desapareceu. Ela tirava os sapatos e se deitava perto de mim. Ó grandes atitudes do Homem e da Mulher, em que se procura juntar, na inocência dos primeiros dias e com a humildade da argila, o que a Criação separou, em que Eva fica admirada e submissa diante do Homem, ao lado de quem ela desperta, como ele próprio, ainda só, diante de Deus que o formou. Albertine cruzava os braços atrás dos cabelos pretos, os quadris bojudos, a perna caída numa inflexão de pescoço de cisne que se alonga e se recurva para voltar sobre si mesmo. Só quando ela estava inteiramente de lado, é que se via um certo aspecto de seu rosto (tão bom e tão bonito de frente) que eu não podia suportar, adunco feito em certas caricaturas de Leonardo da Vinci, parecendo revelar maldade, avidez pelo lucro, artimanhas de uma espiã cuja presença em minha casa me teria horrorizado, e que parecia desmascarada por esses perfis. E logo eu tomava o rosto de Albertine entre as mãos e a repunha de frente para mim.
- Seja bonzinho, prometa-me que, se não sair amanhã, há de trabalhar - dizia a minha amiga recolocando a camisa.
- Sim, mas não ponha ainda o seu peignoir. -
Às vezes eu acabava dormindo ao lado dela. O quarto esfriara, era preciso lenha. Eu tentava encontrar a campainha às minhas costas; não a alcançava, tateando todos os varões de cobre que não eram os dois entre os quais ela ficava pendurada e, a Albertine, que saltara da cama para que Françoise não nos visse lado a lado, eu dizia:
- Não, volte para aqui por um instante; não consigo achar a campainha.
Instantes doces, alegres, na aparência inocentes e onde, no entanto, acumula-se a possibilidade do desastre, o que faz da vida amorosa a mais contrastada de todas, aquela em que a chuva imprevisível de enxofre e pez tomba após os mais risonhos momentos, e em que, a seguir, sem ter coragem de tirar uma lição da desgraça, reconstruímos imediatamente sobre os flancos da cratera, de onde só poderá sobrevir a catástrofe. Eu tinha a despreocupação daqueles que julgam duradoura a sua felicidade.
Justamente porque foi necessária essa doçura para engendrar a dor -e aliás ela voltará para acalmá-la a intervalos -é que os homens podem ser sinceros com outrem, e até consigo mesmos, quando enaltecem a bondade de uma mulher para com eles, embora, feitas as contas, na intimidade de sua ligação circule constantemente, de modo secreto, inconfessado aos outros ou involuntariamente revelado por perguntas e inquéritos, uma dolorosa inquietação. Esta, porém, não poderia ter nascido sem a doçura prévia; mesmo a seguir, a doçura intermitente é necessária para tornar suportável o sofrimento e evitar rupturas; e a dissimulação do inferno secreto que é a vida em comum com essa mulher, até a ostentação de uma intimidade que fingimos ser doce, exprime um ponto de vista verdadeiro, um nexo geral de causa e efeito, uma das formas segundo as quais a produção da dor se tornou possível.
Já não me admirava de que Albertine ali se encontrasse e só devesse sair no dia seguinte comigo ou sob a proteção de Andrée. Tais hábitos de vida em comum, essas grandes linhas que delimitavam a minha existência e em cujo interior não podia penetrar ninguém exceto Albertine, e também (no plano futuro, ainda desconhecido de mim, de minha vida ulterior, como o que é traçado por um arquiteto quanto aos monumentos que só se erguerão bem mais tarde) as linhas distantes, paralelas a essas, e mais amplas, com as quais se esboçava em mim, como uma ermida isolada, a fórmula um tanto rígida e monótona de meus amores futuros, na verdade tinham sido traçadas naquela noite em Balbec, onde, depois que Albertine me revelara, no trenzinho, quem a havia educado, eu desejara a todo preço subtraí-
la a certas influências e impedi-la de estar longe da minha presença durante alguns dias. Os dias tinham-se sucedido uns aos outros, os hábitos tornaram-se maquinais, mas, como esses ritos de que a História busca descobrir o significado, eu poderia dizer (e não o desejaria) a quem me houvesse perguntado o que significava essa vida de retiro na qual me seqüestrava, a ponto de não ir mais ao teatro, que ela se originava na ansiedade de uma noite e na necessidade de provas a mim mesmo, nos dias seguintes, que a moça cuja infância deplorável eu acabara de conhecer, não teria a possibilidade, se o quisesse, de se expor às mesmas tentações. Não pensava senão muito raramente nessas possibilidades, mas elas deviam entretanto permanecer vagamente presentes na minha consciência. O fato de destruí-las-ou de tentá-lo -dia após dia era sem dúvida o motivo pelo qual era-me tão doce beijar aquelas faces que não eram mais bonitas que muitas outras; sob toda doçura carnal um pouco profunda, existe a permanência de um perigo.
Eu havia prometido a Albertine que, se não saísse com ela, haveria de entregar-me ao trabalho.
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