Neste momento, abordando o relato de Aimé por outro ângulo que não o que ele me apresentara no instante em que o fizera, meu pensamento, que até então navegara sorridente sobre aquelas águas bem-aventuradas, estourava de súbito, como se houvesse dado de encontro a uma mina invisível e perigosa, insidiosamente colocada naquele ponto da minha memória. Ele me dissera que a tinha encontrado, que lhe achara umas maneiras estranhas. Que pretendera dizer com maneiras estranhas? Eu tinha entendido maneiras vulgares, pois, para antecipadamente contradizê-lo, havia declarado que ela possuía distinção. Mas não, talvez ele quisesse dizer maneiras de Gomorra. Ela estava com uma amiga, talvez se abraçassem pela cintura e olhassem para outras mulheres, talvez de fato tivessem um "jeito" que eu jamais vira em Albertine na minha presença. Quem seria a amiga? Onde Aimé tinha encontrado essa odiosa Albertine? Eu tentava lembrar-me exatamente do que Aimé havia dito, para ver se aquilo podia se referir ao que imaginava, ou se ele quisera falar apenas de maneiras vulgares. Porém, por mais que indagasse, a pessoa que fazia a pergunta e aquela que podia oferecer a lembrança eram infelizmente uma só e a mesma pessoa, eu, que momentaneamente me duplicava, mas sem nada acrescentar. Eu questionava debalde, era eu quem respondia, não ficava sabendo mais nada. Já não pensava na Srta. Vinteuil. Nascido de uma suspeita nova, o acesso de ciúme que me assaltava era igualmente novo, ou melhor, não passava do prolongamento, da extensão de tal suspeita; tinha o mesmo cenário, que já não era Montjouvain, mas o caminho em que Aimé havia encontrado Albertine; e, por objeto, algumas amigas, das quais uma ou outra poderia ser a que estava com Albertine naquele dia. Talvez fosse uma certa Élisabeth, ou então, as duas moças que Albertine olhara pelo espelho no cassino, quando parecia não vê-Ias. Sem dúvida, mantinha relações com elas, e aliás também com Esther, a prima de Bloch. Tais relações, caso me fossem reveladas por um terceiro, teriam bastado para que eu ficasse meio morto, mas como era eu que as imaginava, tinha o cuidado de acrescentar bastante incerteza para amortecer o sofrimento. Sob a forma de suspeitas, chega-se a observar diariamente, em doses enormes, essa mesma idéia de que se é traído, de que uma quantidade bem pequena poderia ser mortal, inoculada pelo pico de uma palavra lancinante.
E é por isso, sem dúvida, e por um derivado do instinto de conservação, que o mesmo ciumento não hesita em formular suspeitas atrozes acerca de fatos inocentes, com a condição, diante da primeira prova que lhe tragam, de se recusar à evidência. Além disso, o amor é um mal incurável, como essas diáteses em que o reumatismo só dá um pequeno descanso para ceder lugar a enxaquecas epileptiformes.
Serenada a suspeita ciumenta, eu ficava agastado com Albertine por não ter sido carinhosa, quem sabe por ter zombado de mim com Andrée. Pensava com terror no juízo que ela formaria se Andrée lhe repetisse todas as nossas conversas; o futuro me parecia atroz. Essas tristezas só me deixavam se uma nova suspeita ciumenta me lançava em outras buscas, ou ia se, pelo contrário, as manifestações de ternura de Albertine tornassem insignificante a minha felicidade. Quem poderia ser essa moça? Era necessário que eu escrevesse a Aimé, que procurasse vê-lo, e a seguir verificaria suas palavras conversando com Albertine, pondo-a em confissão. Enquanto esperava, julgando que se tratasse da prima de Bloch, pedi a este, que absolutamente não entendeu com que objetivo, que me mostrasse uma só fotografia dela, ou, bem mais, que me fizesse encontrá-la casualmente.
Quantas pessoas, cidades, estradas, o ciúme assim nos faz tão ávido para conhecê-las! Ele é uma sede de saber graças à qual, sobre pontos isolados uns dos outros, acabamos por ter sucessivamente, todas as noções possíveis, salvo a que desejaríamos. Não se sabe nunca se uma suspeita não nascerá, pois de repente a gente se recorda de uma frase que não era clara, de um álibi que não fora dado sem segundas intenções. No entanto, não voltamos a ver a pessoa, porém existe um ciúme posterior que nasce apenas depois que a deixamos, um ciúme retardatário. Talvez o hábito de guardar no fundo de mim mesmo alguns desejos que eu adquirira, desejo de uma moça da sociedade como as que eu via passar da minha janela seguidas da sua governanta, e mais particularmente daquela de que me falara Saint-Loup, que freqüentava os bordéis, desejo das belas camareiras e especialmente daquela da Sra. Putbus, desejo de ir ao campo, no começo da primavera, a fim de rever os espinheiros-alvos, as macieiras em flor, as tempestades, desejo de Veneza, desejo de me pôr, a trabalhar, desejo de levar a vida de toda a gente, talvez o hábito de conservar em mim, insaciavelmente, todos esses desejos, contentando-me com a promessa feita a mim mesmo de não me esquecer de satisfazê-los um dia, talvez esse hábito, antigo de tantos anos, do adiamento perpétuo, daquilo que o Sr. de Charlus estigmatizava com o nome de procrastinação, se tivesse tornado tão geral em mim que também se apropriava de minhas suspeitas ciumentas e, fazendo-me tomar nota mentalmente de um dia não deixar de ter uma explicação com Albertine a respeito da moça (talvez das moças, esta parte da narrativa era confusa, apagada, quer dizer, indecifrável, na minha memória) com a qual ou as quais - Aimé a encontrara, fazia-me atrasar essa explicação. Em todo caso, não falaria disso naquela noite com a minha amiga, para não me arriscar a parecer ciumento e aborrecê-la. Todavia, quando, no dia seguinte, Bloch me enviou a fotografia de sua prima Esther, eu me apressei a fazê-la chegar às mãos de Aimé.
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