E no mesmo instante, lembrei-me que Albertine recusara-me, de manhã, um prazer que de fato poderia tê-la cansado. Seria então para reservá-lo para outrem, talvez naquela tarde? A quem? Assim é que é interminável o ciúme, pois mesmo que o ser amado, por exemplo estando morto, não pode mais provocá-lo com seus atos, ocorre que as lembranças, posteriormente a todo acontecimento, comportam-se de repente em nossa memória como outros tantos acontecimentos, lembranças que não tínhamos esclarecido até então, que nos tinham parecido insignificantes, e às quais basta a nossa própria reflexão sobre elas, sem nenhum fato exterior, para conferir um sentido novo e terrível. Não precisamos ser dois, basta estarmos sozinhos no quarto, pensando, para que se produzam novas traições de nossa amante, mesmo que esteja morta.

Assim, não se deve temer no amor, como na vida comum, apenas o futuro, mas também o passado, que muitas vezes só se realiza para nós depois do futuro; e não falamos somente do passado de que ficamos sabendo muito tarde, mas daquele que conservamos desde longo tempo em nós e que de súbito aprendemos a decifrar.

Não importa, eu me sentia bem feliz, a tarde findava, e já não tardava a hora em que ia pedir a Albertine o sossego de que precisava. Infelizmente, a noitada que chegou foi uma dessas em que tal sossego não me foi trazido, em que o beijo que Albertine me daria, ao me deixar, bem diferente do beijo habitual, não me acalmaria mais do que outrora o de minha mãe quando estava zangada, e quando eu não tinha coragem de chamá-la de novo, mas sentia que não poderia adormecer. Essas noites agora eram aquelas em que Albertine formara, para o dia seguinte, algum projeto que não queria que eu conhecesse. Se me houvesse confiado, eu teria posto em assegurar a sua realização um ardor que ninguém senão Albertine poderia me inspirar. Mas ela não me dizia nada e, aliás, não tinha necessidade de dizer coisa alguma: logo que regressava, mesmo à porta do quarto, como ainda estivesse de chapéu ou de gorro, eu já vira o desejo desconhecido, rebelde, encarniçado, indomável. Ora, era muitas vezes nas noites em que eu havia esperado o seu regresso com os mais ternos pensamentos, em que contava saltar-lhe ao pescoço com a maior ternura. Ai de mim, como tivera tantas vezes esses desentendimentos com meus pais, a quem achava frios ou irritados no momento em que corria para junto deles transbordando de ternura; não era nada diante dos desentendimentos que ocorrem entre dois amantes. O

sofrimento neste caso é bem menos superficial, é bem mais difícil de suportar, tem por sede uma camada bem mais profunda do coração. Naquela noite, Albertine no entanto foi obrigada a me dizer uma palavra acerca do projeto que havia formado; compreendi imediatamente que ela, no dia seguinte, queria ir fazer uma visita à Sra. Verdurin, visita que, em si mesma, absolutamente não teria me contrariado. Mas com certeza era para ter lá algum encontro, preparar algum prazer. Se não fosse isto, não faria tanta questão dessa visita. Quer dizer, não teria repetido que não se empenhava por ela. Em minha existência, eu havia seguido um caminho inverso ao dos povos que só se utilizam da escrita fonética depois de terem considerado os caracteres apenas como uma seqüência de símbolos; eu, que durante tantos anos só buscara a vida e o pensamento reais das pessoas no enunciado direto que deles me forneciam elas voluntariamente, chegara pelo contrário, por culpa delas, a só dar importância aos testemunhos que não são expressão racional e analítica da verdade; as próprias palavras só me informam sob a condição de serem interpretadas como um afluxo de sangue ao rosto de uma pessoa que se perturba, ou ainda, à maneira de um súbito silêncio. Determinado advérbio (por exemplo, empregado pelo Sr. de Cambremer quando ele julgava que eu era "escritor" e que, não tendo ainda me falado, ao contar uma visita que havia feito aos Verdurin, voltara-se para mim, dizendo:

- Estava lá justamente Borrelli- lançado numa conflagração pela proximidade involuntária, por vezes perigosa, de duas idéias que o interlocutor não exprimia, e da qual eu podia extraí-las por certos métodos de análise ou de eletrólise apropriados, dizia-me mais coisas que um discurso. Às vezes Albertine deixava escapar, em suas frases, um ou outro desses preciosos amálgamas que eu me apressava a "tratar" para transformá-los em idéias claras.

De resto, é uma das coisas mais terríveis para o enamorado que, se os fatos particulares que só a experiência, a espionagem, entre tantas realizações possíveis, fariam conhecer-são tão difíceis de achar, em compensação, a verdade seja tão fácil de perceber ou apenas de pressentir. Muitas vezes eu a vira, em Balbec, fixar sobre as moças que passavam um olhar brusco e prolongado, semelhante a um contato, e após o qual, se eu as conhecia, indagava-me:

- E se as convidássemos? Gostaria de lhes dizer uns desaforos. -

E desde algum tempo, desde que sem dúvida me adivinhara o pensamento, nenhum pedido para convidar ninguém, nenhuma palavra, nem mesmo um desvio de olhar, que se tornara silencioso e sem finalidade, e com a fisionomia distraída e vaga de que eram acompanhados, tão revelador como outrora a sua magnetização. Pois bem, não me era possível censurá-la ou fazer perguntas a propósito de coisas que ela teria declarado ser tão ínfimas, tão insignificantes, que eu conservara na memória só pelo prazer de "esmiuçar". Já é difícil dizer "por que olhou para aquela moça?" e mais ainda "por que não olhou para ela?" E no entanto eu bem sabia, ou pelo menos teria sabido, se tivesse desejado acreditar, não nas afirmações de Albertine, mas em todos os nadas incluídos em um olhar, provados por ele e por tal ou qual contradição nas palavras, contradição da qual muitas vezes só me dava conta muito tempo depois de tê-la deixado, que me fazia sofrer a noite inteira, na qual não tinha mais coragem de voltar a falar, mas que nem por isso deixava de honrar minha memória de vez em quando com suas visitas periódicas.

Muitas vezes, naqueles simples olhares furtivos ou desviados na praia de Balbec, ou nas ruas de Paris, eu podia indagar-me se a pessoa que os provocava não era somente um objeto de desejos no momento em que passava, mas uma conhecida antiga, ou então uma moça de quem lhe haviam falado e da qual, quando eu vinha a sabê-lo, ficava estupefato de que lhe houvessem falado, de tão fora que a julgava de todos os conhecimentos possíveis de Albertine. Mas a Gomorra é um puzzle feito de pedaços que vêm de onde menos se espera. Foi assim que, em Rivebelle, compareci a um grande jantar, onde por acaso conhecia, ao menos de nome, as dez convidadas, tão dissemelhantes quanto possível, e todavia perfeitamente ajustadas, de forma que jamais vi um jantar tão homogêneo, muito embora tão composto.

Para retornar às jovens passantes, Albertine jamais teria olhado para uma senhora idosa ou um velho com tanta fixidez ou, pelo contrário, com reserva e como se não os visse.