Estávamos resignados ao sofrimento, crendo amar fora de nós, e nos damos conta de que nosso amor é uma função da nossa tristeza, que nosso amor é talvez nossa tristeza, e que o objeto dele só em parte diminuta é a moça de cabeleira negra. Mas enfim, são principalmente tais seres que nos inspiram o amor. Na maioria das vezes, o amor não tem por objeto um corpo, a não ser quando nele se fundem uma emoção, o medo de perdê-lo, a incerteza de reencontrá-lo. Ora, esse tipo de ansiedade tem muita afinidade pelos corpos.
Ela acrescenta-lhes uma qualidade que ultrapassa a própria beleza, o que é um dos motivos por que vemos homens, indiferentes às mulheres mais belas, amarem apaixonadamente algumas que nos parecem feias. A essas criaturas, a essas criaturas de fuga, sua natureza e a nossa inquietação emprestam asas. E até junto a nós o seu olhar parece dizer que vão alçar vôo. A prova dessa beleza, que excede a beleza acrescentada pelas asas, é que, muitas vezes, para nós, uma mesma criatura é sucessivamente alada e sem asas. Basta recearmos perdê-la para esquecermos todas as outras. Certos de conservá-la, comparamo-la a essas outras, que logo preferimos a ela. E, como essas emoções e certezas podem alternar-se de uma semana para outra, uma criatura pode, numa semana, ver sacrificarem-lhe tudo o que lhe agradava, na semana seguinte ser sacrificada, e assim por diante durante muito tempo. O que seria incompreensível, se não soubéssemos pela experiência que todo homem tem de ter em sua vida, ao menos uma vez, deixado de amar, esquecido uma mulher, o pouco em si mesma que é uma criatura quando já não o é mais, ou não é ainda permeável às nossas emoções. E ficamos bem entendidos que o que dizemos dessas criaturas de fuga é igualmente verdadeiro para as criaturas em prisão, mulheres cativas que julgamos jamais poder possuir. Desse modo, os homens detestam as alcoviteiras, pois elas facilitam a fuga, fazem brilhar a tentação; mas, se amam uma mulher enclausurada, procuram de bom grado as alcoviteiras para fazê-las saírem de sua prisão e conduzi-las a eles. O motivo pelo qual as uniões com mulheres raptadas são menos duradouras que outras, é que o medo de não chegarmos a obtê-las ou a inquietação de vê-las fugir compõe todo o nosso amor e que, uma vez roubadas a seu marido, arrancadas a seu teatro, curadas da tentação de nos abandonar, numa palavra, dissociadas de nossa emoção, seja qual for, elas são apenas elas próprias, ou seja, quase nada e, tão longamente cobiçadas, são logo abandonadas por aquele mesmo que tanto temera ser abandonado por elas.
Eu disse: "Mas como é que não adivinhei?" Mas não o adivinhara desde o primeiro dia em Balbec? Não adivinhara em Albertine uma dessas meninas sob cujo envoltório carnal palpitam mais criaturas ocultas, já não digo que num baralho ainda na caixa, que numa catedral fechada ou num teatro antes que entremos, porém mais do que na multidão imensa e renovada? Não apenas tantas criaturas, mas o desejo, a lembrança voluptuosa, a busca inquieta por tantas criaturas. Em Balbec, eu não ficara perturbado, pois nem sequer supusera que um dia haveria de seguir pistas mesmo falsas. Não importa, para mim aquilo dera a Albertine a plenitude de um ser cheio até as bordas pela superposição de tantas criaturas, de tantos desejos e de lembranças voluptuosas de criaturas. E agora que ela me dissera um dia:
- Srta. Vinteuil -, eu desejaria, não arrancar-lhe o vestido para ver seu corpo, mas, através do corpo, ver toda a sua agenda de recordações e de seus próximos e ardentes encontros marcados.
Como as coisas provavelmente mais insignificantes assumem de repente um valor extraordinário quando uma criatura a quem amamos (ou a quem só falta aquela duplicidade para que a amemos) no-las esconde! Em si mesmo, o sofrimento não nos causa obrigatoriamente sentimentos de amor ou ódio pela pessoa que o provocou: um cirurgião que nos causa dor nos deixa indiferente. Mas uma mulher que nos afirmou durante algum tempo que éramos tudo para ela, sem que ela própria fosse tudo para nós, uma mulher que temos prazer em ver, beijar, em ter sobre os nossos joelhos, muito admirados ficamos ao descobrir, por uma súbita resistência, que não dispomos dela.
A decepção acorda então às vezes em nós a lembrança esquecida de uma velha angústia, que no entanto sabemos não ter sido provocada por essa mulher, mas por outras cujas traições se escalonam sobre o nosso passado. E, além disso, como se tem a coragem de desejar viver, como se pode fazer um movimento para se preservar da morte num mundo em que o amor só é causado pela mentira e consiste apenas em nossa aspiração de ver acalmadas nossas dores pela criatura que nos fez sofrer? Para sair do acabrunhamento que sentimos ao descobrir essa mentira e essa resistência, há o triste remédio de procurar agir, contra a vontade dela, com a ajuda de pessoas que sentimos serem mais ligadas à sua vida do que nós próprios, sobre aquela que nos resiste e nos mente, usar de astúcia nós também, fazer-nos detestar. Mas o sofrimento de um tal amor é desses que invencivelmente levam o enfermo a procurar, numa mudança de posição, um bem-estar enganoso. Tais meios de ação não nos faltam, ai de nós! E o horror desses amores, que somente a inquietude gerou, decorre de que viramos e reviramos sem cessar dentro em nós frases insignificantes; sem contar que raramente as criaturas pelas quais os sentimos nos agradam fisicamente de maneira completa, visto que não é o nosso gosto deliberado, mas o acaso de um minuto de angústia, minuto indefinidamente prolongado pela nossa fraqueza de caráter, a qual refaz todas as noites as experiências e se rebaixa aos calmantes, que fez a escolha por nós.
Sem dúvida o meu amor por Albertine não era o mais miserável daqueles até onde, por falta de vontade, a gente pode decair, pois não era inteiramente platônico; ela concedia-me satisfações carnais, e além disso era inteligente. Porém tudo isto era supérfluo. O que me ocupava o espírito não era o que ela pudesse dizer de inteligente, mas certa frase que acordava em mim uma dúvida sobre seus atos. Eu tentava me lembrar se ela dissera isto ou aquilo, com que ar, em que momento, em resposta a que palavras, reconstituir toda a cena de seu diálogo comigo, em que momento ela quisera ir à casa dos Verdurin, que palavra minha dera o ar contrariado a seu rosto.
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