Mesmo nos primeiros tempos da nossa chegada a Paris, insatisfeito com as informações que Andrée e o motorista me haviam passado sobre os passeios que faziam com minha amiga, eu sentira os arredores de Paris tão cruéis como os de Balbec e saíra em viagem por alguns dias com Albertine. Mas em toda parte a incerteza sobre o que ela fazia era a mesma; as possibilidades de que fosse o mal, igualmente numerosas, a vigilância ainda mais difícil, de forma que voltei com ela a Paris. Na verdade, ao deixar Balbec, julgara abandonar Gomorra, arrancando Albertine de lá; ai de mim, Gomorra andava espalhada pelos quatro cantos do mundo. E parte devido ao meu ciúme, parte por ignorância dessas alegrias (caso que é bastante raro), eu havia regulado, sem o saber, esse jogo de esconde-esconde em que Albertine me fugiria sempre.
Interrogava-a à queima-roupa:
- Ah, a propósito, Albertine, será que sonhei ou você me disse que conhecia Gilberte Swann?
- Sim, quer dizer, ela me falou no curso, porque possuía os cadernos de História da França, até foi muito gentil e me emprestou os cadernos, que devolvi assim que tornei a vê-la.
- Será que ela é do tipo das mulheres de quem não gosto?
-Oh, de jeito nenhum; pelo contrário.
Mas, em vez de me entregar a esse gênero de conversas inquiridoras, dedicava-me com freqüência a imaginar o passeio de Albertine, as forças que não empregava em fazê-lo, e falava à minha amiga com esse ardor que os projetos irrealizados conservam inato. Expressava tamanha vontade de rever determinado vitral da Sainte-Chapelle, tamanha pena de não poder fazê-lo sozinho em sua companhia, que ela me respondia com ternura:
- Mas, meu querido, já que isso lhe agrada tanto, faça um pequeno esforço, venha conosco.
Esperaremos o tempo que você quiser até que fique pronto. Além disso, se lhe agrada mais estar sozinho comigo, basta mandar embora Andrée, ela voltará em outra ocasião. -
Mas esses mesmos pedidos de sair aumentavam a tranqüilidade que me permitia ficar em casa.
Eu não imaginava que a apatia em descarregar desse modo sobre Andrée ou o motorista os cuidados de acalmar a minha agitação, deixando-lhes a tarefa de vigiar Albertine, paralisasse em mim, tornando inertes, todos esses movimentos imaginativos da inteligência, todas as inspirações da vontade que auxiliam a adivinhar e a impedir o que uma pessoa vai fazer. Era tanto mais perigoso, visto que, por natureza, o mundo das possibilidades sempre me estivera mais aberto que o da contingência real. Isto ajuda a conhecer a alma, porém a gente se deixa enganar pelos indivíduos. Meu ciúme nascia através de imagens, devido a um sofrimento e não de acordo com uma probabilidade. Ora, pode haver na vida dos homens e dos povos (e um dia deveria haver na minha) um momento em que seja necessário ter dentro de si um chefe de polícia, um diplomata de larga visão, um delegado de segurança, que, ao invés de pensar nos possíveis que estende aos quatro pontos cardeais, raciocina corretamente, dizendo consigo:
"Se a Alemanha declara isto, é que nos deseja fazer outra coisa, não uma outra coisa vaga, mas precisamente esta ou aquela que talvez já esteja começada. Se determinada pessoa fugiu, não foi para os locais a, b ou d, mas para o ponto c, e o local onde é necessário realizar nossas buscas é etc." Ai de mim, essa faculdade, não muito desenvolvida em mim, eu a deixava entorpecer-se, perder suas forças, desaparecer, ao me habituar a ficar sossegado no momento em que outros se ocupavam da vigilância por mim. Quanto à razão desse desejo, ter-me-ia sido desagradável externá-la a Albertine. Dizia-lhe que o médico me ordenara que permanecesse deitado. Não era verdade. E, mesmo que o fosse, suas prescrições não me impediriam de acompanhar a minha amiga. Pedia a esta que me dispensasse de acompanhá-la e à Andrée.
Direi apenas uma das razões, e que era uma razão de cautela. Quando saía com Albertine, por um momento em que ela ficasse sem mim, eu me mostrava inquieto, imaginava que ela talvez falasse a alguém ou apenas olhasse alguém. Se ela não estava de muito bom humor, eu logo pensava que a estava fazendo perder ou adiar um projeto. A realidade não passa jamais de uma isca lançada a um desconhecido em cujo caminho não podemos ir muito longe. É preferível não saber, pensar o menos possível, não fornecer ao ciúme o menor detalhe concreto. Infelizmente, à falta da vida exterior, os incidentes igualmente são causados pela vida interior; à falta dos passeios de Albertine, as eventualidades encontradas nas reflexões que eu fazia sozinho forneciam-se às vezes esses pequenos retalhos de realidade que atraem a si próprios, como um ímã, um pouco do desconhecido, que desde então faz-se doloroso. Por mais que se viva sob o equivalente de uma campânula pneumática, as associações de idéias e as lembranças continuam a agir.
Mas semelhantes choques internos não ocorriam de imediato; logo que Albertine saía para seu passeio, eu me sentia revivescer, nem que fosse apenas por alguns segundos, pelas virtudes exaltantes da solidão.
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