Um moleiro não precisa dizer que é moleiro, isto se percebe muito bem por toda a farinha que o cobre: ainda traz a marca dos sacos que carregou. No caso de Andrée era a mesma coisa, ela franzia as sobrancelhas como você, depois o longo pescoço; enfim, nem sei como explicar. Quando pego um livro que esteve em seu quarto, posso ir lê-lo lá fora; ainda assim, todos sabem que procede de você, pois conserva algo de suas horríveis fumigações. É uma coisa de nada, não sei lhe dizer, mas no fundo é um nada bastante agradável. Toda vez que alguém falava de você com simpatia, ou dava a impressão de tê-lo em alta consideração, Andrée ficava encantada.
Apesar de tudo, para evitar que houvesse algo preparado sem meu conhecimento, aconselhei-a a abandonar naquele dia o passeio aos Buttes-Chaumont e ir de preferência à Saint-Cloud, ou a outro lugar.
É certo que isso não queria dizer que eu amasse Albertine nem um pouco. O amor talvez não passe da propagação desses redemoinhos que, em seguida a uma emoção, comovem a alma. Alguns deles tinham remexido com minha alma inteira quando Albertine, em Balbec, me falara da Srta. Vinteuil, mas agora estavam parados. Eu já não amava Albertine, pois não me restava mais coisa alguma do sofrimento, agora curado, que eu tivera no trem, em Balbec, ao saber como fora a adolescência delas, talvez com visitas à Montjouvain. Pensara demais em tudo isso, estava curado. Mas, por instantes, certos modos de falar de Albertine me faziam supor - não sei porquê - que ela deveria ter recebido, em sua vida ainda tão curta, muitos galanteios e declarações, e tê-los recebido com prazer, ou seja, com sensualidade. Assim, dizia ela a propósito de qualquer coisa:
- É verdade? É verdade mesmo? -
Decerto, se houvesse dito como uma Odette:
- É verdade mesmo essa grande mentira? - eu não me inquietaria, pois o próprio ridículo da fórmula era explicado por uma estúpida banalidade de espírito feminino. Mas seu ar interrogativo: - É
verdade? dava, por um lado, a estranha impressão de uma criatura que não pode perceber as coisas por si mesma, que apela para o nosso testemunho, como se não possuísse as mesmas faculdades que nós (diziam-lhe: "Faz uma hora que partimos", ou "chove", e ela perguntava: "É verdade?"). Infelizmente, por outro lado, essa dificuldade de se dar conta por si mesma dos fenômenos exteriores não devia ser a verdadeira origem de "É verdade? É verdade mesmo?". Antes parecia que tais palavras teriam sido, desde sua nubilidade precoce, respostas aos: "Sabe que jamais encontrei uma criatura tão linda como você", "sabe que sinto um grande amor por você, que estou num estado de excitação terrível", afirmações às quais respondiam, com uma modéstia faceiramente aprovadora, esses "É verdade? É verdade mesmo?", os quais só serviam a Albertine, em suas relações comigo, para responder com uma pergunta a uma afirmação do tipo:
-Você dormiu mais de uma hora. - É verdade?
Sem me sentir absolutamente enamorado de Albertine, sem contar no número dos prazeres os momentos que passávamos juntos, continuara preocupado com o emprego de seu tempo; certamente, fugira eu de Balbec para estar seguro de que ela não poderia mais ver tal ou qual pessoa com quem eu receava tanto que ela se comportasse mal, rindo-se, talvez rindo de mim, que havia tentado habilmente romper de um só golpe, com minha partida, todas as suas más relações. E Albertine era dotada de uma tal força de passividade, tão grande faculdade de esquecer e de se submeter, que essas relações de fato tinham sido rompidas, curando a fobia que me atormentava. Porém esta pode se apresentar sob tantas formas quanto o mal incerto que é o seu objetivo. Enquanto meu ciúme não se reencarnava em novas criaturas, eu tivera, depois de passados os meus sofrimentos, um intervalo de calma. Mas o menor pretexto serve para fazer renascer uma doença crônica, como aliás a menor ocasião pode servir para que, após uma trégua de castidade, se exerça de novo, com criaturas diversas, o vício da pessoa que é a causa deste ciúme. Eu conseguira separar Albertine de suas cúmplices e, desse modo, exorcizar minhas alucinações; se era possível fazê-la esquecer as pessoas, tornar breves os seus relacionamentos, todavia o seu gosto pelo prazer era igualmente crônico e talvez só esperasse uma oportunidade para saciar-se.
Ora, Paris fornece tantas ocasiões para isto como Balbec. Em qualquer cidade ela não precisaria procurar, pois o mal não estava em Albertine apenas, mas em outras, para as quais toda ocasião de prazer é boa. O olhar de uma, logo entendido pela outra, aproxima as duas famintas. E é fácil a uma mulher sagaz dar a impressão de não ver, e cinco minutos depois dirigir-se à pessoa que a compreendeu e a está esperando numa rua transversal, e, com duas palavras, marcar um encontro. Quem saberá jamais? E era tão simples para Albertine dizer-me, para que aquilo continuasse, que desejava rever determinado ponto de Paris que lhe agradara. Assim, bastava que ela regressasse muito tarde, que seu passeio tivesse durado um tempo inexplicável, embora talvez bem fácil de ser explicado sem a ocorrência de qualquer motivo sensual, para que meu mal renascesse, desta vez relacionado a representações que não eram de Balbec, e que eu me esforçaria, como às precedentes, para destruir, como se a destruição de uma causa efêmera pudesse carrear consigo a de um mal congênito. Eu não me dava conta de que nessas destruições, onde tinha por cúmplice, em Albertine, a sua faculdade de mudar, a sua força de esquecer, quase de odiar, o objeto recente de seu amor, causava por vezes uma dor profunda a tal ou qual das criaturas desconhecidas com quem ela sucessivamente desfrutara o prazer, e que era debalde que causava essa dor, pois essas criaturas seriam abandonadas porém substituídas; e, paralelamente ao caminho balizado por tantos abandonos que ela cometeria levianamente, outro prosseguiria implacável para mim, apenas interrompido por muito breves intervalos; de modo que, pensando bem, meu sofrimento não podia ter um fim senão comigo ou com Albertine.
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