Mr. Pepper na verdade criou uma distração saltando em sua cadeira, os dois pés encolhidos debaixo do corpo,como uma solteirona vendo um camundongo, quando acorrente de ar atingiu seus tornozelos. Encolhido ali em cima, pitando seu charuto, braços ao redor dos joelhos, eleparecia a imagem de Buda, e lá de cima começou um discurso endereçado a ninguém, pois ninguém o pedira, a respeito das profundezas inexploradas do oceano. Declarouse surpreso ao saber que embora Mr. Vinrace possuísse dez navios, circulando regularmente entre Londres e BuenosAires, nenhum deles se destinava a investigar os grandesmonstros brancos das águas mais profundas.
– Não, não – riu Willoughby –, bastam-me os mons
tros da terra! Ouviram um suspiro de Rachel:
– Pobres cabritinhas!
– Se não fossem as cabras não haveria música, querida;a música depende das cabras – disse o pai dela com certa aspereza, e Mr. Pepper passou a descrever os monstros brancos, cegos e pelados, deitados encolhidos em bancos de areia no fundo do mar, que explodiriam trazidos à tona,os flancos estourando e espalhando entranhas no vento quando aliviados da pressão, com considerável rigor e tal conhecimento que Ridley ficou repugnado e implorou que parasse.
Helen tirou conclusões de tudo isso, bastante lúgubres.Pepper era um chato; Rachel era uma mocinha rude, prolífica em confidências, e a primeira delas seria: “Sabe, eu não me dou bem com meu pai”. Willoughby, como sempre, amava seu negócio e construía seu império, e entre todos eles ela se entediaria consideravelmente. Sendo mulher de ação, porém, levantou-se e disse que iria para a cama. Na porta, olhou para trás instintivamente para Rachel, esperando que, sendo do mesmo sexo, saíssem juntas da sala. Rachel levantou-se, olhou vagamente o rosto de Helen e comentou com seu leve gaguejar:
– Vou sair para t-t-triunfar no vento.
As piores suspeitas de Mrs. Ambrose se confirmaram;ela desceu pelo corredor balançando de um lado para outro e, apoiando-se na parede branca, ora com o braço direito, ora com o esquerdo, a cada balanço exclamava enfaticamente:
-Droga!
2
Por mais desconfortável que a noite pudesse ter sido,com seu movimento balouçante e seus cheiros de maresia, e para um deles sem dúvida o foi porque Mr. Pepper tinha pouca roupa sobre sua cama, o café da manhã seguinte teve uma espécie de beleza. A viagem começara, e começara feliz com um céu azul suave e um mar calmo. A sensação de recursos ociosos de coisas não ditas tornou a hora importante, de modo que em anos futuros toda a jornada talvez fosse representada por essa única cena, com o som de sirenes uivando no rio na noite anterior, de alguma forma misturado nela.
A mesa tinha aparência alegre com maçãs, pão e ovos.Helen passou a manteiga a Willoughby, e quando fezisso olhou-o e refletiu, “E ela se casou com você, e acho que foi feliz”.
Prosseguiu numa cadeia de pensamentos familiares, levando a toda sorte de reflexões bem conhecidas, desde o antigo espanto, por que Theresa se casara com Willoughby?
“Naturalmente a gente vê isso”, pensou ela, referindose ao fato de que se via que ele era grande e robusto, com uma grande e sonora voz e um punho e uma vontade própria: “mas ...” aqui ela entrou numa bela análise dele, que é bem representada com uma palavra, “sentimental”, no sentido de que ele nunca era simples e honesto quanto aos seus sentimentos. Por exemplo, raramente falava na morta, mas comemorava os aniversários com singular pompa. Ela suspeitava de que ele fosse capaz de inomináveis atrocidades com sua filha, como sempre suspeitara que ele enganasse a esposa. Naturalmente passou a comparar sua própria sorte com a sorte de sua amiga, pois a esposa de Willoughby fora talvez a única mulher que Helen chamou de amiga, e essa comparação muitas vezes era o tema de seus diálogos. Ridley era um intelectual, e Willoughby, um homem de negócios. Ridley estava editando o terceiro volume de Píndaro quando Willoughby lançava ao mar seu primeiro navio. Construíram uma nova fábrica no mesmo ano em que o ensaio sobre Aristóteles – fora esse mesmo? – aparecia na Editora da Universidade. “E Rachel”, ela a encarou, querendo sem dúvida decidir a discussão que de resto estava equilibrada demais, declarando que não se podia comparar Rachel com seus próprios filhos.
“Na verdade ela poderia ter seis anos de idade”foi tudo
o que disse, porém, referindo-se, nesse julgamento, ao contorno suave do rosto da moça, sem condená-la de outro modo, pois se Rachel fosse pensar, sentir, rir ou expressar-se, em vez de derramar leite do alto para ver que tipo de gotas produzia, poderia ser interessante, embora nunca bela. Era como sua mãe, como a imagem na piscina num calmo dia de verão é parecida com a vívida face corada que se inclina sobre ela.
Entretanto, a própria Helen estava sendo examinada,embora por nenhuma de suas vítimas. Mr. Pepper a analisava; e suas meditações, realizadas enquanto cortava sua torrada em tiras e as cobria escrupulosamente de manteiga, levaram-no por um considerável trajeto de autobiografia. Um de seus olhares penetrantes assegurou-lhe que estava certo na noite passada ao julgar que Helen era linda. Passou-lhe a geléia docemente. Ela falava bobagens,mas não mais do que as pessoas costumam falar no café da manhã, a circulação do cérebro, como ele sabia por experiência própria, podia causar problemas nessa hora. Ele prosseguiu dizendo “não” para ela, por princípio, pois jamais cedia a uma mulher apenas pelo seu sexo. E aqui,baixando os olhos para seu prato, ele se tornou autobiográfico. Não se casara, pelo motivo suficiente de que jamais encontrara uma mulher que lhe suscitasse respeito.Condenado a passar os sensíveis anos da juventude numa estação ferroviária em Bombaim, ele vira só mulheres de cor, esposas de militares, de funcionários do governo.
1 comment