Quentin respondeu:“As noções de Virginia sobre a Américado Sul eram grotescas. Ela tinha uma amiga, VictoriaOcampo, de Buenos Aires, que tinha de explicar a ela quea Argentina não era uma floresta com jacarés e borboletastão grandes quanto urubus e com nativos perseguidos porpumas. A colônia de língua inglesa de The Voyage Out só existia na imaginação dela.” (A amizade de Virginia com Victoria Ocampo começou na década de 1930, duas décadas depois de A Viagem.) Sua imaginação estava sempre viajando por continentes onde nunca esteve. Só mais para o fim da vida Virginia, que nunca estivera na América, considerava a idéia de visitar os Estados Unidos.)
O romance, em se tratando de Virginia Woolf, contém uma vastidão de elementos autobiográficos. Helen e Ridley lembram os pais da autora (Helen lembra também sua irmã Vanessa). Rachel, é claro, tem muito dela mesma,Virginia.Terence Hewet,com quem a heroína acaba noivando, tem mais do cunhado Clive Bell mas também algo de Leonard Woolf (a quem ela dedica o livro). Para St.John Hirst, cujo homossexualismo recebe no livro um tratamento velado,Virginia tomou como modelo o amigo Lytton Strachey (Strachey e Virginia, antes de ela decidir-se por Leonard, flertaram a idéia, logo descartada, de se casarem). Lady Ottoline Morrell (que também irá inspirar personagens em romances de Aldous Huxley e D.H.Lawrence) em A Viagem inspirou Virginia a criar a entusiasmada Mrs. Flushing. E assim outros, como a espevitada e comovente Evelyn Murgatroyd, filha de mãe solteira,fã de Garibaldi, fugindo do assédio de Sinclair e Perrott mas atrás do ambíguo St. John Hirst, que foge dela como o diabo da cruz.
O sabor maior de A Viagem está nos diálogos e nashistórias narradas pelos personagens. Embora de partodifícil (as várias versões do livro) já brota aqui, auspiciosamente, o humor de Virginia Woolf. Nada é previsível,tudo é surpresa e choque. Os personagens são extremamente tagarelas. Em momentos de puro lampejo sãoacudidos por revelações definitivas. Talvez por isso umdeles pense escrever um romance sobre o silêncio. Esendo ingleses, volta e meia estão se preparando paramais uma sessão de chá. Virginia ciclotímica no fluxo daconsciência. Uma hora é assim, outra hora é assado. Repentinamente as personagens se cansam de achar tudo ótimo e, irritadíssimas, descarregam fel e venenoumas nas outras. De feminina, feminista, magra, delicada, compassiva, Virginia vira fera, botinuda, e chuta obalde mandando tudo às favas. Mas são favas contadas. Logo ela volta cheia de compaixão. E quem sai ganhando é o leitor, porque tudo é ritmo, genialidade, paixão,pathos. E a opressão geográfica provoca ora o maior bem estar, ora uma insustentável irritabilidade. O paraísotropical se transforma em covil de serpentes. Mas, passada a tempestade, a crise, a demolição, volta a solidariedade, a amizade, o amor, o entendimento. Nada é simples, tudo é complexo, complexos são a autora e a América do Sul onde todos se encontram. À medida em que o livro vai caminhando para o fecho, do capítuloXXI até o capítulo XXV, não dá mais para ler de umasentada só, como se diz das obras fáceis. O sofrimento sem fim, a longa agonia, o delírio e finalmente a mortede Rachel é um dos capítulos mais profundos e tocantesde toda a obra de Virginia Woolf.
Em 2003 a International Virginia Woolf Society, sediada nos EUA, convidou-me a colaborar em um número especial do Virginia Woolf Miscellany, órgão da sociedade, número dedicado às traduções de VW no mundo todo.
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