Coube a mim escrever sobre as traduções brasileiras, desde Mário Quintana (Mrs.Dalloway) e Cecília Meireles (Orlando) às mais recentes, de Lya Luft e outros tão bons quanto. A pergunta geral era: Virginia Woolf viaja bem em traduções? Meu texto veio em primeiro lugar, logo após a introdução de Patricia Laurence, a editora, que escreveu: “Este número nos leva à Europa, ao Oriente Médio, ao Extremo Oriente e faz dela [Virginia] uma local. Como afirma vivamente Antonio Bivar sobre as traduções em língua portuguesa, ‘é como se Virginia Woolf fosse uma grande escritora brasileira’. Cada um dos artigos aqui devem ser apresentados do mesmo modo
– como se Virginia Woolf fosse japonesa, hebréia, espanhola, francesa...” E escrevi: “Virginia Woolf viaja perfeitamente bem em nossa língua. E que coincidência: em seu primeiro romance, The Voyage Out (A Viagem), o cenário onde se passa a ação é a América do Sul. Jane Wheare,editora e autora da introdução e notas da edição de 1992 de The Voyage Out, na coleção Penguin/Twentieth-Century Classics escreveu: ‘Santa Marina é uma cidade imaginária situada (de acordo com as descrições no romance) no Brasil, na boca da Amazônia’.”
Antonio Bivar
Membro do The Virginia Woolf
Society of Great Britain
Introdução
Minha tia Virginia Woolf foi realmente uma grande escritora? Quando eu ainda era adolescente, umas poucas pessoas pareciam pensar assim, embora não tantas quanto hoje, e suas vozes espalhavam-se mais debilmente, nem muito convencidas nem muito convincentes. Mas naquele tempo o mundo era infinitamente menor e a palavra ‘grande’significava algo diferente.Aliava-se a alguma coisa tremenda, gigantesca e granítica, e apesar de Jane Austen, Charlotte Brontë e George Eliot, era duvidoso que uma mulher pudesse aspirar a tal condição.
Às vezes me perguntavam o que eu achava e eu não sabia responder: a pergunta me parecia descabida, não combinava com o fato de Virginia ser minha tia. Se isso expressa meu próprio narcisismo, também expressa a seriedade com que Virginia assumia seu papel de tia. Mas como Rachel Vinrace em A viagem, eu não apenas suspeitava de que meu interlocutor exagerava, aumentava o tema segundo seus próprios objetivos, como também ficava calada por não saber o que responder de verdade.
Isso em parte ocorria porque eu não apenas conhecia Virginia como membro da família – um dos ‘adultos’ –, mas porque, tendo o privilégio de escutar atrás dos bastidores, sabia que estava longe de ser perfeita. Podíamos provocá-la, rir dela, às vezes na sua frente, mas em geral às suas costas. Virginia a egoísta, Virginia a desastrada, Virginia a distraída, Virginia a exagerada, a esnobe e mexeriqueira. Minha família raramente elogiava seus próprios membros: virtude era considerada coisa natural porque defeitos comuns – habitualmente tolerados – eram muito mais divertidos de se comentar.
Mesmo assim, a verdade (oposta à exatidão) era importante, e eu sabia que era preciso ser fiel a ela: mas que proposição impossível relacionada a alguém tão próximo de mim, tão protéico, tão esquivo, irônico e inconclusivo. Para minha autodefesa eu costumava dizer que preferia seus ensaios críticos aos romances, mas hoje vejo que minha mente não estava pronta para ser excitada e fertilizada pela maravilhosa imaginação de Virginia. Estava na fase em que ainda precisava identificar-me com heróis e heroínas, e não existe nenhum nos romances de Virginia: são indivíduos e personalidades, mas encarados com um distanciamento que se recusa a conferir-lhes as proporções de uma Catherine Earnshaw ou um Julien Sorel. Apesar de toda a sua simpatia e afeição, Virginia vê com o olho mais do que com o coração, e é um olho colocado na lente de um telescópio ou no topo do Monumento. Teria sido preciso mais conhecimento, mais imaginação do que estava a meu alcance, para apreciar os talentos especiais de Virginia como romancista.
A viagem não é um romance apreciado pelos que não podem tolerar certa distância entre eles mesmos e o tema. A identificação com Rachel, Terence ou Helen só trará decepção, pois, não sendo sobre-humanos, eles não podem nos levar a essa condição. Com exceção talvez de Helen Ambrose, são as pessoas mais comuns do mundo. São também arquétipos de homem e mulher, um pouco achatados pela distância, como se avistados muito cedo de manhã, através de um nevoeiro.
Pois este, devemos lembrar, é um primeiro romance, publicado em 1915. Virginia estava testando suas asas. As penas já estão ali, essas que a farão pairar alto sem esforço, mas no momento há um grande encanto nessa experiência nova, a aurora do seu protesto contra romantismo e realismo, afirmado por uma jovem mulher que, embora inexperiente, já é capaz de um ponto de vista intelectualmente maduro e sofisticado.
No capítulo XVI de A viagem,Terence Hewet, namorado de Rachel Vinrace, diz: “Eu quero escrever um romance sobre o silêncio, as coisas que as pessoas não dizem. Mas a dificuldade é imensa”. Olhava-a quase com severidade. “Ninguém se importa. Só se lê um romance para ver que tipo de pessoa é o escritor e, se é conhecido, para ver quais de seus amigos ele botou lá dentro.”
Essa é uma queixa que a própria Virginia pode ter feito de tempos em tempos.Talvez não fosse muito séria,ou esperamos que não, pois para nós, leitores de sua obra, um dos maiores prazeres é a oportunidade de ver dentro da mente de Virginia. Humana, pessoal e bem-humorada como sempre é uma face dela, aumenta a nossa sensação de intimidade se pudermos distinguir, entre seus persona-gens e situações, personalidades e reações que se ligam ao que sabemos sobre sua própria vida. Mas há um motivo mais profundo, o de que a mente de Virginia era excepcional; seus interesses, amplos e variados; suas emoções, profundas; suas convicções, apaixonadamente defendidas
– mais que isso, sentimos que ela não dirá nada em que não acredite. Já que este é um romance muito preocupado com um senso de discriminação e de valores, sua própria mente e visão são em grande parte o verdadeiro tema deste livro: não as poderíamos evitar ainda que quiséssemos. Elas são o ar que durante essa extraordinária viagem temos o privilégio de respirar.
Os eventos que formam o romance são extremamente simples. Depois de uma viagem através do oceano para as latitudes do Sul, durante a qual a heroína sente o frêmito de ser beijada por um homem com quase o dobro de sua idade, ela se apaixona por um rapaz chamado Terence Hewet.
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