A isso, Mr. Fogg respondia que ela não tinha do que se preocupar, e que tudo se resolveria matematicamente! Foi a palavra que usou.

Como saber se a jovem compreendia aquele horrível advérbio? Todavia, os seus grandes olhos fixavam-se nos de Mr. Fogg, os seus grandes olhos “límpidos como os lagos sagrados do Himalaia”! O intratável Fogg, porém, mais formal do que nunca, não parecia homem do tipo que se atira nesses lagos...

Esta primeira parte da travessia do Rangoon realizou-se em excelentes condições; o tempo, afinal, facilitava a navegação. Toda aquela porção da imensa baía que os marujos chamam “os braços do Bengala” mostrou-se favorável ao seu avanço. O Rangoon não tardou a deparar com o Grande-Andaman, a ilha principal do arquipélago, cuja pitoresca montanha de Saddle-Peak, com os seus dois mil e quatrocentos pés, orienta de muito longe os navegadores.

A nave perlongou a costa a pequena distância. Os selvagens papuas da ilha não apareceram. Criaturas situadas no mais baixo grau da escala humana, eles são erroneamente tidos por antropófagos.

O desdobramento panorâmico daquelas ilhas era belíssimo: imensas florestas de arecas, de bambuais, de moscadeiras, de tecas, de gigantescas mimosáceas, de fetos arborescentes, cobriam a paisagem num primeiro plano, enquanto, ao fundo, sobressaía a elegante silhueta das montanhas. Na orla, pululavam milhares daquelas preciosas salanganas[16], cujos ninhos, comestíveis, constituem uma iguaria apreciadíssima no Celeste Império. Mas todo aquele variado espetáculo, proporcionado pelo grupo das Andaman, passou rápido, e o Rangoon seguiu velozmente no rumo do estreito de Malaca, que deveria lhe dar acesso às águas do mar da China.

Mas o que fazia, durante essa travessia, o inspetor Fix, tão desastradamente arrastado numa viagem de circunavegação? Partindo de Calcutá, depois de ter deixado instruções para que o mandado, caso enfim chegasse, lhe fosse remetido a Hong-Kong, ele pudera embarcar-se a bordo do Rangoon sem ser notado por Chavemestra, e esperava dissimular sua presença até a chegada do navio. Com efeito, ser-lhe-ia difícil explicar por que ele achava-se a bordo sem despertar as suspeitas de Chavemestra, que devia supô-lo em Bombaim. Mas Fix foi levado a reatar uma relação com o bom homem pela própria lógica das circunstâncias. De que maneira, é o que veremos.

Todas as esperanças, todos os anseios do inspetor de polícia, estavam agora concentrados num único ponto do mundo, Hong-Kong, já que o navio ficaria muito pouco tempo em Singapura para que nessa cidade ele pudesse operar. Era, então, em Hong-Kong que a captura do ladrão haveria de realizar-se, ou o ladrão lhe escaparia, por assim dizer, sem volta.

De fato, Hong-Kong era ainda um território inglês, mas o último que haveria no percurso. Mais além, a China, o Japão, a América ofereceriam um refúgio mais ou menos seguro para o senhor Fogg. Em Hong-Kong, se lhe chegasse enfim o mandado de prisão, Fix deteria Fogg e o entregaria à polícia local. Nenhuma dificuldade. Para lá de Hong-Kong, no entanto, um simples mandado de prisão não bastaria: ele ainda precisaria de um ato de extradição. Daí atrasos, vagar, obstáculos de toda natureza, dos quais haveria de valer-se o espertalhão para escapar definitivamente. Se a operação falhasse em Hong-Kong, tornar-se-ia, senão impossível, pelo menos muito difícil retomá-la com alguma possibilidade de sucesso.

“Portanto – Fix repetia a si mesmo no curso das longas horas que passava dentro da sua cabina –, ou o mandado chegará em Hong-Kong e eu darei voz de prisão ao meu homem, ou ele não chegará, e, nesse caso, eu terei de retardar sua partida a qualquer preço! Fracassei em Bombaim, fracassei em Calcutá! Se eu falhar em Hong-Kong, minha reputação estará perdida! Custe o que custar, isso terá de dar certo. Mas que meio empregar para retardar, se for necessário, a partida desse maldito Fogg?”

Em última instância, Fix estava decidido a revelar tudo a Chavemestra, a fazê-lo conhecer o seu amo, o qual ele servia e do qual não era certamente o cúmplice. Chavemestra, instruído por essa revelação e temendo ver-se comprometido, ficaria, sem dúvida, do seu lado, do lado de Fix. Mas, enfim, esse era um expediente arriscado, que só poderia ser utilizado na mais absoluta falta de um outro. Uma palavra de Chavemestra a seu amo bastaria, então, para pôr irrevocavelmente em perigo o desfecho do caso.

O inspetor de polícia achava-se, assim, extremamente embaraçado, quando a presença de Mrs. Aouda a bordo do Rangoon em companhia de Phileas Fogg lhe abriu novas perspectivas.

Quem era aquela mulher? Que concurso de circunstâncias fizera dela a acompanhante de Fogg? Fora evidentemente entre Bombaim e Calcutá que o encontro tivera lugar. Mas em que ponto da península? O acaso, então, é que reunira Phileas Fogg e a jovem viajante? Ou aquela viagem através da Índia, ao contrário, fora empreendida por esse cavalheiro com o propósito de encontrar aquela encantadora figura? – pois ela era encantadora! Fix a observara na sala de audiências do tribunal de Calcutá.

Compreende-se a que ponto o agente devia estar intrigado. Ele se perguntava se não haveria nesse caso algum rapto criminoso. Sim! devia ser isso! Essa idéia incrustou-se nos miolos de Fix, e ele entendeu todo o partido que poderia tirar dessa circunstância. Que aquela jovem fosse casada ou não, tratava-se de um rapto, e seria possível, em Hong-Kong, suscitar embaraços tais ao seqüestrador que nem com dinheiro ele se safaria.

Mas não se devia esperar a chegada do Rangoon em Hong-Kong. O tal Fogg tinha a detestável mania de saltar de um navio a outro, e, antes que se tomasse as primeiras providências para a sua captura, ele já estaria longe.

O importante, portanto, era prevenir as autoridades inglesas e avisar da passagem do Rangoon antes do seu desembarque. E nada podia ser mais fácil, uma vez que o navio faria uma escala em Singapura e que Singapura ligava-se à costa chinesa por uma linha telegráfica.

Todavia, antes de agir e visando operar com mais segurança, Fix resolveu interrogar Chavemestra.