Adeus, carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho

Do meu delírio! Adeus, belo corpo adorado!

Em ti, como num vale, adormeci deitado,

No meu sonho de amor, em meão do caminho...

Beijo-te inda uma vez, num último carinho,

Como quem vai sair da pátria desterrado...

Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo!

Berço em que se emplumou o meu primeiro idílio,

Terra em que floresceu o meu primeiro beijo!

Adeus! Esse outro amor há de amargar-me tanto

Como o pão que se come entre estranhos, no exílio,

Amassado com fel e embebido de pranto...

Romeu e Julieta

(Ato III, cena V.)

JULIETA:

Por que partir tão cedo? Inda vem longe o dia...

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Ouves? é o rouxinol. Não é da cotovia

Esta encantada voz. Repara, meu amor:

Quem canta é o rouxinol na romãzeira em flor.

Toda a noite essa voz, que te feriu o ouvido,

Povoa a solidão como um longo gemido.

Abracemo-nos! fica! inda vem longe o sol!

Não canta a cotovia: é a voz do rouxinol!

ROMEU:

É a voz da cotovia anunciando a aurora!

Vês? há um leve tremor pelo horizonte afora.

Das nuvens do levante abre-se o argênteo véu,

E apagam-se de todo as limpadas do céu.

Já sobre o cimo azul das serras nebulosas,

Hesitante, a manhã coroada de rosas

Agita os leves pés, e fica a palpitar

Sobre as asas de luz, como quem quer voar.

Olha! mais um momento, um rápido momento,

E o dia sorrirá por todo o firmamento!

Adeus! devo partir! partir para viver...

Ou ficar a teus pés para a teus pés morrer!

JULIETA:

Não é o dia! O espaço inda se estende, cheio

Da noite caridosa. Exala do ígneo seio

O sol, piedoso e bom, este vivo dano

Sé para te guiar por entre a cerração.

Fica um minuto mais! por que partir tão cedo?

ROMEU:

Mandas? não partirei! esperarei sem medo

Que a morte, com a manhã, venha encontrar-me aqui!

Sucumbirei feliz, sucumbindo por ti!

Mandas? não partirei! queres? direi contigo

Que é mentira o que vejo e mentira o que digo!

Sim! tens razão! não é da cotovia a voz

Este encantado som que erra em torno de nós!

É um reflexo da lua a claridade estranha

Que aponta no horizonte acima da montanha!

Fico para te ver, fico para te ouvir,

Fico para te amar, morro por não partir!

Mandas? não partirei! cumpra-se a minha sorte!

Julieta assim o quis: bem-vinda seja a morte!

Meu amor, meu amor! olha-me assim! assim!

JULIETA:

Não! é o dia! é a manhã! Parte! foge de mim!

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Parte! apressa-te! foge! A cotovia canta

E do nascente em fogo o dia se levanta

Ah! reconheço enfim estas notas fatais!

O dia! ... a luz do sol cresce de mais em mais

Sobre a noite nupcial do amor e da loucura!

ROMEU:

Cresce... E cresce com ela a nossa desventura!

Vinha de Nabot

Maldito aquele dia, em que abriste em meu seio,

Cruel, esta paixão, como, ampla e iluminada,

Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio

Da espessa escuridão de uma selva cerrada!

Ah! três vezes maldito o amor que me avassala,

E me obriga a viver dentro de um pesadelo,

Louco! por toda a parte ouvindo a tua fala,

Vendo por toda a parte a cor do teu cabelo!

De teu colo no vale embalsamado e puro

Nunca descansarei, como num paraíso,

Sob a tenda aromal desse cabelo escuro,

Olhando o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.

Desvairas-me a razão, tiras-me a calma e o sono!

Nunca te possuirei, bela e invejada vinha,

Ó Vinha de Nabot que tanto ambiciono!

Ó alma que procuro e nunca serás minha!

Sacrilégio

Como a alma pura, que teu corpo encerra,

Podes, tão bela e sensual, conter?

Pura demais para viver na terra,

Bela demais para no céu viver.

Amo-te assim! - exulta, meu desejo!

É teu grande ideal que te aparece,

Oferecendo loucamente o beijo,

E castamente murmurando a prece!

Amo-te assim, à fronte conservando

A parra e o acanto, sob o alvor do véu,

E para a terra os olhos abaixando,

E levantando os braços para o céu.

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Ainda quando, abraçados, nos enleva

O amor em que me abraso e em que te abrasas,

Vejo o teu resplandor arder na treva

E ouço a palpitação das tuas asas.

Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,

Os céus se estendem pelo teu olhar,

E, dentro dele, os serafins errantes

Passam nos raios claros do luar:

Em vão! — descerras úmidos, e cheios

De promessas, os lábios sensuais,

E, à flor do peito, empinam-se-te os seios,

Ameaçadores como dois punhais.

Como é cheirosa a tua carne ardente!

Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca.

Beijo-a, aspiro-a... Mas sinto, de repente,

As mãos geladas e gelada a boca:

Parece que uma santa imaculada

Desce do altar pela primeira vez,

E pela vez primeira profanada

Tem por olhos humanos a nudez...

Embora! hei de adorar-te nesta vida,

Já que, fraco demais para perdê-la,

Não posso um dia, deusa foragida,

Ir amar-te no seio de uma estrela.

Beija-me! Ficarei purificado

Com o que de puro no teu beijo houver;

Ficarei anjo, tendo-te ao meu lado:

Tu, ao meu lado, ficarás mulher.

Que me fulmine o horror desta impiedade!

Serás minha! Sacrílego e profano,

Hei de manchar a tua castidade

E dar-te aos lábios um gemido humano!

E à sombria mudez do santuário

Preferirás o cálido fulgor

De um cantinho da terra, solitário,

Iluminado pelo meu amor...

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Estâncias

I

Ah! finda o inverno! adeus, noites, breve esquecidas,

Junto ao fogo, com as mãos estreitamente unidas!

Abracemo-nos muito! adeus! um beijo ainda!

Prediz-me o coração que é o nosso amor que finda,

Há de em breve sorrir a primavera. Em breve,

Branca, aos beijos do sol, há de fundir-se a neve.

E.