Se acordo

Parece que erro. Sinto que não sei.

Nada quero nem tenho nem recordo.

Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,

Fantasmas me limitam e me contêm.

Dorme insciente de alheios corações,

Coração de ninguém.

(6/1/1923)

*

O menino da sua mãe

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

– Duas, de lado a lado –,

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

“O menino da sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:

“Que volte cedo, e bem!”

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

*

Qualquer música

Qualquer música, ah, qualquer,

Logo que me tire da alma

Esta incerteza que quer

Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,

Viola, harmônio, realejo...

Um canto que se desgarra...

Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!

Jota, fado, a confusão

Da última dança vivida...

Que eu não sinta o coração!

*

Natal... Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

‘Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!

*

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço

Das coisas,

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão –

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

*

Guia-me a só razão.

Não me deram mais guia.

Alumia-me em vão?

Só ela me alumia.

Tivesse quem criou

O mundo desejado

Que eu fosse outro que sou,

Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

“Cego, fora eu bendito”?

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão –

Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

(2/1/1932)

*

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

*

Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

*

Eros e Psique

...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades

que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas

que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor,

são, ainda que opostas, a mesma verdade.

Do ritual do Grau de Mestre do Átrio

na Ordem Templária de Portugal

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

*

Dizem?

Esquecem.

Não dizem?

Disseram.

Fazem?

Fatal.

Não fazem?

Igual.

Por quê

Esperar?

– Tudo é

Sonhar.

*

Poemas de Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos (1911-1912)

II

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência é não pensar...

VIII

Num meio-dia de fim de Primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas –

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito-Santo anda a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse

[que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradas

Com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou –

“Se é que ele as criou, do que duvido” –.

“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres”.

E depois, cansado de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

E eu levo-o ao colo para casa.

... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina

É esta minha cotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que

[eu sou poeta sempre.

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do sol

A variar os montes e os vales

E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?

XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que

[corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

XXIV

O que nós vemos das coisas são as coisas.

Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos

Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê,

Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desaprender

E uma sequestração na liberdade daquele convento

De que os poetas dizem que as estrelas

[são as freiras eternas

E as flores as penitentes convictas de um só dia,

Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas

Nem as flores senão flores,

Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

XXXII

Ontem à tarde um homem das cidades

Falava à porta da estalagem.

Falava comigo também.

Falava da justiça e da luta para haver justiça

E dos operários que sofrem,

E do trabalho constante, e dos que têm fome,

E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos

E sorriu com agrado, julgando que eu sentia

O ódio que ele sentia, e a compaixão

Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.

Que me importam a mim os homens

E o que sofrem ou supõem que sofrem?

Sejam como eu – não sofrerão.

Todo o mal do mundo vem de nos

[importarmos uns com os outros,

Quer para fazer bem, quer para fazer mal.

A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.

Querer mais é perder isto, e ser infeliz).

Eu no que estava pensando

Quando o amigo de gente falava

(E isso me comoveu até às lágrimas),

Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos

A esse entardecer

Não parecia os sinos duma capela pequenina

A que fossem à missa as flores e os regatos

E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,

E tenho o egoísmo natural das flores

E dos rios que seguem o seu caminho

Preocupados sem o saber

Só com o florir e ir correndo.

É essa a única missão no Mundo,

Essa – existir claramente,

E saber fazê-lo sem pensar nisso).

E o homem calara-se, olhando o poente.

Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

* * *

O pastor amoroso (1914-1930)

Quando eu não te tinha

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora amo a Natureza

Como um monge calmo à Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais comovida e próxima...

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor –

Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Porque ainda o sou.

(6/7/1914)

*

O amor é uma companhia.

Já não sei andar só pelos caminhos,

Porque já não posso andar só.

Um pensamento visível faz-me andar mais depressa

E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem

[de ir vendo tudo.

Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.

E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.

Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito

[do que sinto na ausência dela.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.

Toda a realidade olha para mim como um

[girassol com a cara dela no meio.

(10/7/1930)

*

Eu não sei falar porque estou a sentir.

Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,

E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.

Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,

E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.

Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.

(8/11/1929)

* * *

Poemas inconjuntos (1913-1915)

A espantosa realidade das coisas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,

E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.

Hei de escrever muitos mais, naturalmente.

Cada poema meu diz isto,

E todos os meus poemas são diferentes,

Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.

Não me ponho a pensar se ela sente.

Não me perco a chamar-lhe minha irmã.

Mas gosto dela por ela ser uma pedra,

Gosto dela porque ela não sente nada,

Gosto dela porque ela não tem parentesco

[nenhum comigo.

Outras vezes ouço passar o vento,

E acho que só para ouvir passar o vento

[vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;

Mas acho que isto deve estar bem porque

[o penso sem esforço,

Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;

Porque o penso sem pensamentos,

Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,

E eu admirei-me, porque não julgava

Que se me pudesse chamar qualquer coisa.

Eu nem sequer sou poeta: vejo.

Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:

O valor está ali, nos meus versos.

Tudo isso é absolutamente independente

[da minha vontade.

(07/11/1915)

*

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever

[a minha biografia,

Não há nada mais simples.

Tem só duas datas – a da minha nascença

[e a da minha morte.

Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.

Vi como um danado.

Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.

Nunca tive um desejo que não pudesse

[realizar, porque nunca ceguei.

Mesmo ouvir nunca foi para mim senão

[um acompanhamento de ver.

Compreendi que as coisas são reais e todas

[diferentes umas das outras;

Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.

Compreender isto com o pensamento seria

[achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.

Fechei os olhos e dormi.

Além disso, fui o único poeta da Natureza.

*

Poemas de Álvaro de Campos

Ode triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza

[tropical –

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –

Canto, e canto o presente, e também o passado e o

[futuro.

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes

[elétricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio

[e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez

[cinquenta,

Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do

[Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes

[êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só

[carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se

[exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel

[último modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me

[passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos.

Da faina transportadora de cargas dos navios.

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase silêncio ciciante e monótono das correias

[de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas

Entre maquinismos e afazeres úteis!

Grandes cidades paradas nos cafés,

Nos cafés – oásis de inutilidades ruidosas

Onde se cristalizam e se precipitam

Os rumores e os gestos do Útil

E as rodas, e as rodas dentadas e as chumaceiras do

[Progressivo!

Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!

Novos entusiasmos de estatura do Momento!

Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,

Ou a seco, erguidas, nos planos inclinados dos portos!

Atividade internacional, transatlântica,

[Canadian Pacific!

Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,

Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,

E Piccadillies e Avenues de l’Opéra que entram

Pela minh’alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!

Tudo o que passa, tudo o que para às montras!

Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente

[bem-vestidos;

Membros evidentes de clubes aristocráticos;

Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente

[felizes

E paternais até na corrente de ouro que atravessa o colete

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presença demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)

Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;

E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se

[mostra

E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa dum regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização cotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,

Artigos políticos insinceramente sinceros,

Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes –

Duas colunas deles passando para a segunda página!

O cheiro fresco a tinta de tipografia!

Os cartazes postos há pouco, molhados!

Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!

Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,

Como eu vos amo de todas as maneiras,

Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato

E como o tato (o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!

Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!

Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!

Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros andantes da

[Indústria,

Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos

[escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos

[figurinos!

Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias seções!

Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é

[diferente de ontem!

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos,

[aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente,

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela,

Completamente vos possuo como a uma mulher bela

[que não se ama.

Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos.

Orçamentos falsificados!

(Um orçamento é tão natural como uma árvore

E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,

Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras

Até à noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Platão era realmente Platão

Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristóteles, que havia de não ser

[discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma

[mulher possuída.

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,

Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!

Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,

E ser levado da rua cheio de sangue

Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,

Ó multidões cotidianas nem alegres nem tristes das

[ruas,

Rio multicolor anônimo e onde eu me posso banhar

[como quereria!

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de

[tudo isto!

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de

[dinheiro,

As dissensões domésticas, os deboches que não se

[suspeitam,

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu

[quarto

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a

[mesma,

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de

[escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosa gente humana que vive como os cães,

Que está abaixo de todos os sistemas morais.

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem

[maus,

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.

Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.

A luz do sol abafa o silêncio das esferas

E havemos todos de morrer,

Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!

Outra vez a obsessão movimentada dos ônibus.

E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo

[dentro de todos os comboios

De todas as partes do mundo,

De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,

Que a estas horas estão levantando ferro ou

[afastando-se das docas.

Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!

Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!

Eh-lá desabamentos de galerias de minas!

Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!

Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,

Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,

Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,

A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,

E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos,

[mínimos,

Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,

Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!

Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!

Eia telegrafia sem fios, simpatia metálica do

[Inconsciente!

Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

Eia todo o passado dentro do presente!

Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!

Eia! eia! eia!

Frutos de ferro e útil da árvore fábrica cosmopolita!

Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para dentro.