Antologia Poética: Olavo Bilac

Justiça a Bilac
Quem escreveu In extremis, Hino à tarde e outros poemas desse nível é um grande poeta, teve a alma vibrando de beleza.
Esta seleção pretende fazer justiça a Olavo Bilac. Para ele eram tão fáceis a expressão e a palavra, escrita ou falada, que a bem dizer teve o direito de se demorar no âmbito delas, sem aprofundar uma visão da vida, a pregar o dever de ser bom, instruído, trabalhador, patriota e de amar. Com isso todos estavam de acordo e adotaram o poeta, jornalista e orador que o sabia dizer tão bem.
Quando veio o Modernismo na década de vinte, uma tomada de consciência, enfronhada da modernidade europeia, do papel do escritor enquanto cidadão e artista, Bilac passa a ser alvo de desprezos fáceis. Mas o líder do Modernismo, seu cérebro estético, Mário de Andrade, não deixou de reconhecer nele o homem sincero e o artista inigualável.
Realmente, ninguém tem na língua verso mais plástico e musical. Nem Bocage, nem Guerra Junqueiro, nem Vicente de Carvalho. E essa música, nos momentos de êxtase, que são vários, já é música das esferas, vai ao cerne da vida.
Paulo Hecker Filho
Dados
Nasce em 1865 no Rio de Janeiro. Seu nome completo, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, dá um verso alexandrino, o que sempre foi tomado popularmente como um sinal de sua vocação. Obtém matrícula na Faculdade de Medicina aos 15 anos, vai até o quinto ano, passa a Direito, mas não termina nenhum curso superior, tinha mais o que fazer. E fazia: escrevia e vivia sem parar, em rodas boêmias, literaturas, amores. Aos 21, um soneto em francês, o que era chique e não incomum na época, sai com o “Ora (direis) ouvir estrelas”. É o sucesso, que logo o tornaria o mais conhecido e benquisto homem de letras do país de todos os tempos, até a morte em 1918 (de edema pulmonar por insuficiência cardíaca, tinha gasto o coração...). A prosa é inacabável, inclusive com contos e um romance, “O esqueleto”, mas mais artigos, conferências, crônicas, e que reúne em vida em vários volumes, alguns em colaboração, com Coelho Neto, Pardal Mallet, até com o Eça iniciou brincando um romance. Em verso, edita “Poesias” em 1988, com a “Profissão de fé”, em que, num eco de “L´art” de Théophile Gautier, empunha a bandeira da Arte e dá o poeta como ourives; não param de criticar, mas ele até podia, pelo poeta que era além do ourives... Seguiam-se, no volume, “Panóplias”, “Via Láctea” e “Sarças de fogo”. A segunda é uma série de 35 sonetos, dados aqui na íntegra, e que, na maioria, cantam um amor, com uma perfeição que impressiona, ainda mais se lembrarmos que tinha apenas 23 anos. Apesar da repercussão, a segunda edição de “Poesias” só vem em 1902, acrescentada de “Alma inquieta”, “As viagens” e “O caçador de esmeraldas”, tentativa de poema épico procurada, verbal, mas que acha inspiração para o fim, aqui reproduzido. De 1904 são as “Poesias infantis”, que o Brasil aprendeu e ainda hoje sabe de cor tantos versos. Por fim, o livro que o grande sensual quer com a solenidade do crepúsculo, “Tarde”, em 1919, no ano seguinte de sua morte, mas cujas provas ainda revisou.
PHF
Antologia
Poética
In Extremis
Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! de um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...
E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...
E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto e este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
A arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...
Eu, com o frio a crescer no coração, – tão cheio
De ti, até no horror do derradeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!
E eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! a delícia da vida!1
A Alvorada do Amor
Um horror grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:
“Chega-te a mim! entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!
Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar: turva-se hediondo o céu...
Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!
Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,
– Terra, melhor que o Céu! homem, maior que Deus!”2
1 É de notar que o poema foi escrito com o autor ainda moço.
2 Poema típico do erotismo que se fez proverbial do autor. Ousa amar desafiando até Deus; pior, se pondo acima dele. É meio elementar, mas fala a língua de uma época sem maior crença, justificando o êxito do poema e do autor. Tem ele enfim a coragem de expressar o espalhado sentido secundário da religião, diante da realização do homem como homem.
Via Láctea
I
Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada,
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.
Eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...
Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.
E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando...
II
Tudo ouvirás, pois que, bondosa e pura,
Me ouves agora com melhor ouvido:
Toda a ansiedade, todo o mal sofrido
Em silêncio, na antiga desventura...
Hoje, quero, em teus braços acolhido,
Rever a estrada pavorosa e escura
Onde, ladeando o abismo da loucura,
Andei de pesadelos perseguido.
Olha-a: torce-se toda na infinita
Volta dos sete círculos do inferno...
E nota aquele vulto: as mãos eleva,
Tropeça, cai, soluça, arqueja, grita,
Buscando um coração que foge, e eterno
Ouvindo-o perto palpitar na treva.
III
Tantos esparsos vi profusamente
Pelo caminho que, a chorar, trilhava!
Tantos havia, tantos! E eu passava
Por todos eles frio e indiferente...
Enfim! enfim! pude com a mão tremente
Achar na treva aquele que buscava...
Por que fugias, quando eu te chamava,
Cego e triste, tateando, ansiosamente?
Vim de longe, seguindo de erro em erro,
Teu fugitivo coração buscando
E vendo apenas corações de ferro.
Pude, porém, tocá-lo soluçando...
E hoje, feliz, dentro do meu o encerro,
E ouço-o, feliz, dentro do meu pulsando.
IV
Como a floresta secular, sombria,
Virgem do passo humano e do machado,
Onde apenas, horrendo, ecoa o brado
Do tigre, e cuja agreste ramaria
Não atravessa nunca a luz do dia,
Assim também, da luz do amor privado,
Tinhas o coração ermo e fechado,
Como a floresta secular, sombria...
Hoje, entre os ramos, a canção sonora
Soltam festivamente os passarinhos.
Tinge o cimo das árvores a aurora...
Palpitam flores, estremecem ninhos...
E o sol do amor, que não entrava outrora,
Entra dourando a areia dos caminhos.
V
Dizem todos: “Outrora como as aves
Inquieta, como as aves tagarela,
E hoje... que tens? Que sisudez revela
Teu ar! que ideias e que modos graves!
Que tens, para que em pranto os olhos laves?
“Sê mais risonha, que serás mais bela!”
Dizem. Mas no silêncio e na cautela
Ficas firme e trancada a sete chaves...
E um diz: “Tolices, nada mais!” Murmura
Outro: “Caprichos de mulher faceira!”
E todos eles afinal: “Loucura!”
Cegos que vos cansais a interrogá-la!
Vê-la bastava; que a paixão primeira
Não pela voz, mas pelos olhos fala.
VI
Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras coisas canto
Muito diversas das que outrora ouvistes.
Mas amastes, sem dúvida... Portanto,
Meditai nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço coisas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.
Quem ama inventa as penas em que vive:
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.
Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando.
VII
Não têm faltado bocas de serpentes,
(Dessas que amam falar de todo o mundo,
E a todo o mundo ferem, maldizentes)
Que digam: “Mata o teu amor profundo!
Abafa-o, que teus passos imprudentes
Te vão levando a um pélago sem fundo...
Vais te perder!” E, arreganhando os dentes,
Movem para o teu lado o olhar imundo:
“Se ela é tão pobre, se não tem beleza,
Irás deixar a glória desprezada
E os prazeres perdidos por tão pouco?
Pensa mais no futuro e na riqueza!”
E eu penso que afinal... Não penso nada:
Penso apenas que te amo como um louco!
VIII
Em que céu mais azul, mais puros ares,
Voa pomba mais pura? Em que sombria
Moita mais nívea flor acaricia,
À noite, a luz dos límpidos luares?
Vives assim, como a corrente fria,
Que, intemerata, aos trêmulos olhares
Das estrelas e à sombra dos palmares,
Corta o seio das matas, erradia.
E envolvida de tua virgindade,
De teu pudor na cândida armadura,
Foges o amor, guardando a castidade,
– Como as montanhas, nos espaços francos
Erguendo os altos píncaros, a alvura
Guardam da neve que lhes cobre os flancos.
IX
De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
Usam todas de lágrimas e preces:
Tu de acerbas risadas e ironias.
De modo tal minha atenção desvias,
Com tal perícia meu engano teces,
Que, se gelado o coração tivesses,
Certo, querida, mais ardor terias.
Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...
Falo-te – e com que fogo a voz levanto! –
Em vão... Finges-te surda às minhas frases...
Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
Cega: e nem vês a nova dor que trazes
À dor antiga que doía tanto!
X
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?
Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.
Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh’alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo...
Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.
XI
Todos esses louvores, bem o viste,
Não conseguiram demudar-me o aspecto:
Só me turbou esse louvor discreto
Que no volver dos olhos traduziste...
Inda bem que entendeste o meu afeto
E, através destas rimas, pressentiste
Meu coração que palpitava, triste,
E o mal, que havia dentro em mim secreto.
Ai de mim, se de lágrimas inúteis
Estes versos banhasse, ambicionando
Das néscias turbas os aplausos fúteis!
Dou-me por pago, se um olhar lhes deres:
Fi-los pensando em ti, fi-los pensando
Na mais pura de todas as mulheres.
XII
Sonhei que me esperavas.
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