A mão, que a febre agita,

Ergue-se, treme no ar, sobe, descamba aflita,

Crispa os dedos, e sonda a terra, e escarva o chão:

Sangra as unhas, revolve as raízes, acerta,

Agarra o saco, e apalpa-o, e contra o peito o aperta,

Como para o enterrar dentro do coração.

 

Ah! mísero demente! o teu tesouro é falso!

Tu caminhaste em vão, por sete anos, no encalço

De uma nuvem falaz, de um sonho malfazejo!

Enganou-te a ambição! mais pobre que um mendigo,

Agonizas, sem luz, sem amor, sem amigo,

Sem ter quem te conceda a extrema-unção de um beijo!

 

E foi para morrer de cansaço e de fome,

Sem ter quem, murmurando em lágrimas teu nome,

Te dê uma oração e um punhado de cal,

– Que tantos corações calcaste sob os passos,

E na alma da mulher que te estendia os braços

Sem piedade lançaste um veneno mortal!

 

E ei-la, a morte! e ei-lo, o fim! A palidez aumenta;

Fernão Dias se esvai, numa síncope lenta...

Mas, agora, um clarão ilumina-lhe a face:

E essa face cavada e magra, que a tortura

Da fome e as privações maceraram, – fulgura,

 

Como se a asa ideal de um arcanjo a roçasse.

Adoça-se-lhe o olhar, num fulgor indeciso;

Leve, na boca aflante, esvoaça-lhe um sorriso...

– E adelgaça-se o véu das sombras. O luar

Abre no horror da noite uma verde clareira.

Como para abraçar a natureza inteira,

Fernão Dias Paes Leme estira os braços no ar...

 

Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas:

Verdes, na verde mata, embalançam-se as ramas;

E flores verdes no ar brandamente se movem;

Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio;

Em esmeraldas flui a água verde do rio,

E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem...

E é uma ressurreição! O corpo se levanta:

Nos olhos, já sem luz, a vida exsurge e canta!

E esse destroço humano, esse pouco de pó

Contra a destruição se aferra à vida, e luta,

E treme, e cresce, e brilha, e afia o ouvido, e escuta

A voz, que na solidão só ele escuta, – só:

 

“Morre! morrem-te às mãos as pedras desejadas,

Desfeitas como um sonho, e em lodo desmanchadas...

Que importa? dorme em paz, que o teu labor é findo!

Nos campos, no pendor das montanhas fragosas,

Como um grande colar de esmeraldas gloriosas,

As tuas povoações se estenderão fugindo!

 

Quando do acampamento o bando peregrino

Saía, antemanhã, ao sabor do destino,

Em busca, ao norte e ao sul, de jazida melhor,

– No cômoro de terra, em que teu pé pousara,

Os colmados de palha aprumavam-se, e clara

A luz de uma clareira espancava o arredor.

 

Nesse louco vergar, nessa marcha perdida,

Tu foste, como o sol, uma fonte de vida:

Cada passada tua era um caminho aberto!

Cada pouso mudado uma nova conquista!

E enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta,

Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!

 

Morre! tu viverás nas estradas que abriste!

Teu nome rolará no largo choro triste

Da água do Guaicuí... Morre, Conquistador!

Viverás quando, feito em seiva o sangue, aos ares

Subires, e, nutrindo uma árvore, cantares

Numa ramada verde entre um ninho e uma flor!

 

Morre! germinarão as sagradas sementes

Das gotas de suor, das lágrimas ardentes!

Hão-de frutificar as fomes e as vigílias!

E um dia, povoada a terra em que te deitas,

Quando, aos beijos do sol, sobrarem as colheitas,

Quando, aos beijos do amor, crescerem as famílias,

 

Tu cantarás na voz dos sinos, nas charruas,

No esto da multidão, no tumultuar das ruas,

No clamor do trabalho e nos hinos da paz!

E, subjugando o olvido, através das idades,

Violador de sertões, plantador de cidades,

Dentro do coração da Pátria viverás!”

 

....................................................................................

 

Cala-se a estranha voz. Dorme de novo tudo.

Agora, a deslizar pelo arvoredo mudo,

Como um choro de prata algente o luar escorre.

E sereno, feliz, no maternal regaço

Da terra, sob a paz estrelada do espaço,

Fernão Dias Paes Leme os olhos cerra. E morre.

No Cárcere

 

 

Por que hei-de, em tudo quanto vejo, vê-la?

Por que hei-de eterna assim reproduzida

Vê-la na água do mar, na luz da estrela,

Na nuvem de ouro e na palmeira erguida?

 

Fosse possível ser a imagem dela

Depois de tantas mágoas esquecida!...

Pois acaso será, para esquecê-la,

Mister e força que me deixe a vida?

 

Negra lembrança do passado! lento

Martírio, lento e atroz! Por que não há-de

Ser dado a toda a mágoa o esquecimento?

 

Por quê? Quem me encadeia sem piedade

No cárcere sem luz deste tormento,

Com os pesados grilhões desta saudade?

 

Nel Mezzo Del Camin...

 

 

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada

E triste, e triste e fatigado eu vinha.

Tinhas a alma de sonhos povoada,

E a alma de sonhos povoada eu tinha...

 

E paramos de súbito na estrada

Da vida: longos anos, presa à minha

A tua mão, a vista deslumbrada

Tive da luz que teu olhar continha.

 

Hoje, segues de novo... Na partida

Nem o pranto os teus olhos umedece,

Nem te comove a dor da despedida.

 

E eu, solitário, volto a face, e tremo,

Vendo o teu vulto que desaparece

Na extrema curva do caminho extremo.3

 

 

3 Para sentir como a poesia de Bilac conformou a mente nacional, basta lembrar que os dois textos que fizeram a fortuna do rio-grandense Alceu Wamosy são ecos dele: Duas almas do soneto acima e Idealizando a morte de In extremis. Não admira o êxito que tiveram e continuam tendo, pois Bilac era e segue sendo o arquétipo poético para o público.

Virgens Mortas

 

 

Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,

Nova, no velho engaste azul do firmamento:

E a alma da que morreu, de momento em momento,

Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

 

Ó vós, que no silêncio e no recolhimento

Do campo, conversais a sós, quando anoitece,

Cuidado! – o que dizeis, como um rumor de prece,

Vai sussurrar no céu, levado pelo vento...

 

Namorados, que andais com a boca transbordando

De beijos, perturbando o campo sossegado

E o casto coração das flores inflamando,

 

– Piedade! elas veem tudo entre as moitas escuras...

Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado

Das que viveram sós, das que morreram puras!

 

 

 

 

 

 

Este, que um deus cruel arremessou à vida,

Marcando-o com o sinal da sua maldição,

– Este desabrochou como a erva má, nascida

Apenas para aos pés ser calcada no chão.

 

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...

Sem constância no amor, dentro do coração

Sente, crespa, crescer a selva retorcida

Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

 

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!

Alma cega, perdida à toa no caminho!

Roto casco de nau, desprezado no mar!

 

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;

E, homem, há-de morrer como viveu: sozinho!

Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!4

 

 

4 Nítida e solidária reflexão sobre um homossexual, no entanto pouco ou não citada pelos recentes movimentos de emancipação gay.

Hino à Tarde

 

 

Glória jovem do sol no berço de ouro em chamas,

Alva! natal da luz, primavera do dia,

Não te amo! nem a ti, canícula bravia,

Que a ti mesma te estruis no fogo que derramas!

 

Amo-te, hora hesitante em que se preludia

O adágio vesperal, – tumba que te recamas

De luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,

Moribunda que ris sobre a própria agonia!

 

Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entre

Os primeiros clarões das estrelas, no ventre,

Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,

 

Trazes a palpitar, como um fruto do outono,

A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,

Perpetuação da vida e iniciação do nada...5

 

 

5 Meu Deus!

Pátria

 

 

Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde

Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho!

E, em seiva, ao teu clamor a minha voz responde,

E subo do teu cerne ao céu de galho em galho!

 

Dos teus liquens, dos teus cipós, da tua fronde,

Do ninho que gorjeia em teu doce agasalho,

Do fruto a amadurar que em teu seio se esconde,

De ti, – rebento em luz e em cânticos me espalho!

 

Vivo, choro em teu pranto; e, em teus dias felizes,

No alto, como uma flor, em ti, pompeio e exulto!

E eu, morto, – sendo tu cheia de cicatrizes,

 

Tu golpeada e insultada, – eu tremerei sepulto:

E os meus ossos no chão, como as tuas raízes,

Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto!

 

 

Língua Portuguesa

 

 

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela...

 

Amo-te assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela,

E o arrolo da saudade e da ternura!

 

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

 

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

 

 

Os Rios

 

 

Magoados, ao crepúsculo dormente,

Ora em rebojos galopantes, ora

Em desmaios de pena e de demora,

Rios, chorais amarguradamente..

 

Desejais regressar... Mas, leito em fora,

Correis... E misturais pela corrente

Um desejo e uma angústia, entre a nascente

De onde vindes, e a foz que vos devora.

 

Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...

Pois no vosso clamor, que a sombra invade,

No vosso pranto, que no mar se lança,

 

Rios tristes! agita-se a ansiedade

De todos os que vivem de esperança,

De todos os que morrem de saudade...

 

 

As Estrelas

 

 

Desenrola-se a sombra no regaço

Da morna tarde, no esmaiado anil;

Dorme, no ofego do calor febril,

A natureza, mole de cansaço.

 

Vagarosas estrelas! passo a passo,

O aprisco desertando, às mil e às mil,

Vindes do ignoto seio do redil

Num compacto rebanho, e encheis o espaço...

 

E, enquanto, lentas, sobre a paz terrena,

Vos tresmalhais tremulamente a flux,

– Uma divina música serena

 

Desce rolando pela vossa luz:

Cuida-se ouvir, ovelhas de ouro! a avena

Do invisível pastor que vos conduz...

 

 

 

O Crepúsculo da Beleza

 

 

Vê-se no espelho; e vê, pela janela,

A dolorosa angústia vespertina:

Pálido, morre o sol... Mas, ai! termina

Outra tarde mais triste, dentro dela;

 

Outra queda mais funda lhe revela

O aço feroz, e o horror de outra ruína:

Rouba-lhe a idade, pérfida e assassina,

Mais do que a vida, o orgulho de ser bela!

 

Fios de prata... Rugas... O desgosto

Enche-a de sombras, como a sufocá-la

Numa noite que aí vem... E no seu rosto

 

Uma lágrima trêmula resvala,

Trêmula, a cintilar, – como, ao sol-posto,

Uma primeira estrela em céu de opala...

 

 

Respostas nas Sombras

 

 

“Sofro... Vejo envasado em desespero e lama

Todo o antigo fulgor, que tive na alma boa;

Abandona-me a glória; a ambição me atraiçoa;

Que fazer, para ser como os felizes?”

– Ama!

 

“Amei... Mas tive a cruz, os cravos, a coroa

De espinhos, e o desdém que humilha, e o dó que infama;

Calcinou-me a irrisão na destruidora chama;

Padeço! Que fazer, para ser bom?”

– Perdoa!

 

“Perdoei... Mas outra vez, sobre o perdão e a prece,

Tive o opróbrio; e outra vez, sobre a piedade, a injúria;

Desvairo! Que fazer, para o consolo?”

– Esquece!

 

“Mas lembro... Em sangue e fel, o coração me escorre;

Ranjo os dentes, remordo os punhos, rujo em fúria...

Odeio! Que fazer, para a vingança?”

– Morre!

 

 

A um Poeta

 

 

Longe do estéril turbilhão da rua,

Beneditino, escreve! No aconchego

Do claustro, na paciência e no sossego,

Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

 

Mas que na forma se disfarce o emprego

Do esforço; e a trama viva se construa

De tal modo, que a imagem fique nua,

Rica mas sóbria, como um templo grego.

 

Não se mostre na fábrica o suplício

Do mestre. E, natural, o efeito agrade,

Sem lembrar os andaimes do edifício:

 

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,

Arte pura, inimiga do artifício,

É a força e a graça na simplicidade.

 

 

Diamante Negro

 

 

Vi-te uma vez, e estremeci de medo...

Havia susto no ar, quando passavas:

Vida morta enterrada num segredo,

Letárgico vulcão de ignotas lavas.

 

Ias como quem vai para um degredo,

De invisíveis grilhões as mãos escravas,

A marcha dúbia, o olhar turvado e quedo

No roxo abismo das olheiras cavas...

 

Aonde ias? aonde vais? Foge o teu vulto;

Mas fica o assombro do teu passo errante,

E fica o sopro desse inferno oculto,

 

O horrível fogo que contigo levas,

Incompreendido mal, negro diamante,

Sol sinistro e abafado ardendo em trevas.6

 

 

6 Esse soneto tem sido dado como sugerido por Cruz e Souza, se bem que as fotos do grande poeta negro não autorizem a versão: mantêm a elegância no vestuário e no porte. A identificação pode ser lenda popular.

Poesias infantis

 

 

 

O pássaro cativo

 

Armas, num galho de árvore, o alçapão;

E, em breve, uma avezinha descuidada,

Batendo as asas cai na escravidão.

 

Dás-lhe então, por esplêndida morada,

A gaiola dourada;

Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos, e tudo:

Por que é que, tendo tudo, há de ficar

O passarinho mudo,

Arrepiado e triste, sem cantar?

 

É que, criança, os pássaros não falam.

Só gorjeando a sua dor exalam,

Sem que os homens os possam entender;

Se os pássaros falassem,

Talvez os teus ouvidos escutassem

Este cativo pássaro dizer:

 

“Não quero o teu alpiste!

Gosto mais do alimento que procuro

Na mata livre em que a voar me viste;

Tenho água fresca num recanto escuro

Da selva em que nasci;

Da mata entre os verdores,

Tenho frutos e flores,

Sem precisar de ti!

Não quero a tua esplêndida gaiola!

Pois nenhuma riqueza me consola

 

De haver perdido aquilo que perdi...

Prefiro o ninho humilde, construído

De folhas secas, plácido, e escondido

Entre os galhos das árvores amigas...

 

Solta-me ao vento e ao sol!

Com que direito à escravidão me obrigas?

Quero saudar as pompas do arrebol!

Quero, ao cair da tarde,

Entoar minhas tristíssimas cantigas!

Por que me prendes? Solta-me, covarde!

Deus me deu por gaiola a imensidade:

Não me roubes a minha liberdade...

Quero voar! voar!...”

 

Estas coisas o pássaro diria,

Se pudesse falar.

E a tua alma, criança, tremeria,

Vendo tanta aflição:

E a tua mão, tremendo, lhe abriria

A porta da prisão...

Os pobres

 

Aí vêm pelos caminhos,

Descalços, e pés no chão,

Os pobres que andam sozinhos,

Implorando compaixão.

 

Vivem sem cama e sem teto,

Na fome e na solidão:

Pedem um pouco de afeto,

Pedem um pouco de pão.

 

São tímidos? São covardes?

Têm pejo? Têm confusão?

Parai para os encontrardes,

E dai-lhes a vossa mão!

 

Guiai-lhes os tristes passos!

Dai-lhes, sem hesitação,

O apoio de vossos braços,

Metade de vosso pão!

 

Não receeis que, algum dia,

Vos assalte a ingratidão:

O prêmio está na alegria

Que tereis no coração.

 

 

Protegei os desgraçados,

Órfãos de toda a afeição:

E sereis abençoados

Por um pedaço de pão...

 

A boneca

 

Deixando a bola e a peteca,

Com que inda há pouco brincavam,

Por causa de uma boneca,

Duas meninas brigavam.

 

Dizia a primeira: “É minha!”

– “É minha!” a outra gritava;

E nenhuma se continha,

Nem a boneca largava.

 

Quem mais sofria (coitada!)

Era a boneca. Já tinha

Toda a roupa estraçalhada,

E amarrotada a carinha...

 

Tanto puxavam por ela,

Que a pobre rasgou-se ao meio,

Perdendo a estopa amarela

Que lhe formava o recheio.

 

E, ao fim de tanta fadiga,

Voltando à bola e à peteca,

Ambas, por causa da briga,

Ficaram sem a boneca...

A vida

 

Na água do rio que procura o mar;

No mar sem fim; na luz que nos encanta;

Na montanha que aos ares se levanta;

No céu sem raias que deslumbra o olhar;

 

No astro maior, na mais humilde planta;

Na voz do vento, no clarão solar;

No inseto vil, no tronco secular,

– A vida universal palpita e canta!

 

Vive até, no seu sono, a pedra bruta...

Tudo vive! E, alta noite, na mudez

De tudo, – essa harmonia que se escuta

 

Correndo os ares, na amplidão perdida,

Essa música doce, é a voz, talvez,

Da alma de tudo, celebrando a Vida!

 

A mocidade

 

A Mocidade é a Primavera!

A alma cheia de flores, resplandece,

Crê no bem, ama a vida, sonha e espera,

E a desventura facilmente esquece.

 

É a idade da força e da beleza:

Olha o futuro e inda não tem passado;

E, encarando de frente a Natureza,

Não tem receio do trabalho ousado.

 

Ama a vigília, aborrecendo o sono;

Tem projetos de glória, ama a Quimera;

E ainda não dá frutos como o outono,

Pois só dá flores como a primavera!

 

As velhas árvores

 

Olha estas velhas árvores, – mais belas,

Do que as árvores moças, mais amigas,

Tanto mais belas quanto mais antigas,

Vencedoras da idade e das procelas...

 

O homem, a fera e o inseto à sombra delas

Vivem livres de fomes e fadigas;

E em seus galhos abrigam-se as cantigas

E alegria das aves tagarelas...

 

Não choremos jamais a mocidade!

Envelheçamos rindo! envelheçamos

Como as árvores fortes envelhecem,

 

Na glória da alegria e da bondade,

Agasalhando os pássaros nos ramos,

Dando sombra e consolo aos que padecem!

 

A pátria

 

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!

 

Criança! não verás nenhum país como este!

Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!

A natureza, aqui, perpetuamente em festa,

É um seio de mãe a transbordar carinhos.

Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,

Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!

Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!

Vê que grande extensão de matas, onde impera,

Fecunda e luminosa, a eterna primavera!

Boa terra! jamais negou a quem trabalha

O pão que mata a fome, o teto que agasalha...

 

Quem com o seu suor a fecunda e umedece,

Vê pago a seu esforço, e é feliz, e enriquece!

 

Criança! não verás país nenhum como este:

Imita na grandeza a terra em que nasceste!7

 

 

7 Esse poema para o leitor infantil tem sido alvo dos mais sisudos ataques de quem, naturalmente, não tem ideia do valor do poeta nem do que seja uma criança.


Terminam aqui as poesias infantis.

 

Benedicite!

 

 

Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o teto;

E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;

E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto,

Fez, aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo;

 

E o que o ferro forjou; e o piedoso arquiteto

Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;

E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;

E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo;

 

E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;

E o que inventou o canto; e o que criou a lira;

E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...

 

Mais bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,

Descobriu a Esperança, a divina mentira,

Dando ao homem o dom de suportar o mundo!

 

 

Fogo-Fátuo

 

 

Cabelos brancos! dai-me, enfim a calma

A esta tortura de homem e de artista:

Desdém pelo que encerra a minha palma,

E ambição pelo mais que não exista;

 

Esta febre, que o espírito me encalma

E logo me enregela; esta conquista

De ideias, ao nascer, morrendo na alma,

De mundos, ao raiar, murchando à vista:

 

Esta melancolia sem remédio,

Saudade sem razão, louca esperança

ardendo em choros e findando em tédios;

 

Esta ansiedade absurda, esta corrida

Para fugir o que o meu sonho alcança,

Para querer o que não há na vida!

 

 

Remorso

 

 

Às vezes, uma dor me desespera...

Nestas ânsias e dúvidas que ando,

Cismo e padeço, neste outono, quando

Calculo o que perdi na primavera.

 

Versos e amores sufoquei calando,

Sem os gozar numa explosão sincera...

Ah! mais cem vidas! com que ardor quisera

Mais viver, mais penar e amar cantando!

 

Sinto o que esperdicei na juventude;

Choro, neste começo de velhice,

Mártir da hipocrisia ou da virtude,

 

Os beijos que não tive por tolice,

Por timidez o que sofrer não pude,

E por pudor os versos que não disse!

 

 

Abstração

 

 

Há no espaço milhões de estrelas carinhosas,

Ao alcance do teu olhar... Mas conjecturas

Aquelas que não vês, ígneas e ignotas rosas,

Viçando na mais longe altura das alturas.

 

Há na terra milhões de mulheres formosas,

Ao alcance do teu desejo... Mas procuras

As que não vivem, sonho e afeto que não gozas

Nem gozarás, visões passadas ou futuras.

 

Assim, numa abstração de números e imagens,

Vives. Olhas com tédio o planeta ermo e triste,

E achas deserta e escura a abóbada celeste.

 

E morrerás, sozinho, entre duas miragens:

As estrelas sem nome – a luz que nunca viste,

E as mulheres sem corpo – o amor que não tiveste!

 

 

 

Estuário

 

 

Viverei! Nos meus dias descontentes,

Não sofro só por mim... Sofro, a sangrar,

Todo o infinito universal pesar,

A tristeza das cousas e dos entes.

 

Alheios prantos, em cachões ardentes,

Vêm ao meu coração e ao meu olhar:

– Tal, num estuário imenso, acolhe o mar

Todas as águas vivas das vertentes.

 

Morre o infeliz, que unicamente encerra

A própria dor, estrangulada em si...

Mas vive a Vida que em meus versos erra;

 

Vive o consolo que deixei aqui;

Vive a piedade que espalhei na terra...

Assim, não morrerei, porque sofri!

 

 

Oração à Cibele

 

 

Deitado sobre a terra, em cruz, levanto o rosto

Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.

Mata-me! Abençoarei teu coração, composto,

Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!

 

Tu, que me dás amor e dor, gosto e desgosto,

Glória e vergonha, tu, que me afagas e feres,

Aniquila-me! E doura e embala o meu sol-posto,

Fonte! berço! mistério! Ísis! Pandora! Ceres!

 

Que eu morra assim feliz, tudo de ti querendo:

Mal e bem, desespero e ideal, veneno e pomo,

Pecados e perdões, beijos puros e impuros!

 

E os astros sobre mim caiam de ti, chovendo,

Como os teus crimes, como as tuas bênçãos, como

A doçura e o travor de teus cachos maduros!

 

 

 

Introibo!

 

 

Sinto às vezes, à noite, o invisível cortejo

De outras vidas, num caos de clarões e gemidos:

Vago tropel, voejar confuso, hálito e beijo

De cousas sem figura e seres escondidos...

 

Miserável, percebo, em tortura e desejo,

Um perfume, um sabor, um tato incompreendidos,

E vozes que não ouço, e cores que não vejo,

Um mundo superior aos meus cinco sentidos.

 

Ardo, aspiro, por ver, por saber, longe, acima,

Fora de mim, além da dúvida e do espanto!

E na sideração, que, um dia, me redima,

 

Liberto flutuarei, feliz, no seio etéreo,

E, ó Morte, rolarei no teu piedoso manto,

Para o deslumbramento augusto do mistério!

 

 

 

Os sinos

 

 

Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...

Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,

Ardemos numa louca aspiração mais casta,

Para transmigrações, para metempsicoses!

 

Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,

Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,

Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!

Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!

 

Em repiques de febre, em dobres a finados,

Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos

Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!

 

Dizei, sinos da terra em clamores supremos,

Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,

Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!

 

 

Vulnerant Omnes, Ultima Necat

 

 

Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas,

Serras e almas, ó Tempo! e, em mudas cataratas,

As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa...

Todas ferem, passando: e a derradeira mata.

 

Mas a vida é um favor! De crepe, ou de ouro e prata,

Da injúria ou do perdão, do opróbrio ou da coroa,

Todas as horas, para o martírio, são gratas!

Todas, para a esperança e para a fé, são boas!

 

Primeira, que, em meu ninho, os primeiros arrulhos

Me deste, e a minha Mãe deste um grito e um orgulho,

Bendita! E todas vós, benditas, na ânsia triste

 

Ou no clamor triunfal, que todas me feristes!

E bendita, que sobre a minha cova aberta

Pairas, última, ó tu que matas e libertas!

Texto de acordo com a nova ortografia.

Capa: L&PM Editores

Revisão: Paulo Hecker Filho, Cintia Moscovich e Simone Borges.

Organização e notas: Paulo Hecker Filho

B595a

Bilac, Olavo, 1865-1918.

Antologia poética / Olavo Brás Martins Bilac. – Porto Alegre: L&PM, 2013.

(Coleção L&PM Pocket ; v. 38)

ISBN 978.85.254.2872-1

1.Ficção brasileira-Poesias. I.Título. II.Série.

CDD 869.91

CDU 869.0(81)-1

Catalogação elaborada por Izabel A.