Não pude comer, nem dormir, durante muitos dias. Entretanto, a minha adorável vizinha falava-me sempre, sorria-me, atirava-me flores, recitava os meus versos e conversava-me sobre o nosso amor. Eu estava cada vez mais apaixonado.
Resolvi destruir o obstáculo da minha felicidade. Resolvi dar cabo do tutor de Ester.
Já o conhecia de vista; muita vez encontramo-nos à volta do espetáculo, em caminho de casa. Ora a rua em que habitava o miserável era escusa e sombria…
Não havia que hesitar: comprei um revólver de seis tiros e as competentes balas.
— E há de ser amanhã mesmo! jurei comigo.
E deliberei passar o resto desse dia a familiarizar-me com a arma no fundo da chácara; mas logo às primeiras detonações os vizinhos protestaram; interveio a polícia, e eu tive de resignar-me a tomar um bode da Tijuca e ir continuar o meu sinistro exercício no hotel Jordão.
Ficou, pois, transferido o terrível desígnio para mais tarde. Eram alguns dias de vida que eu concedia ao desgraçado.
No fim de uma semana estava apto a disparar sem receio de perder a pontaria. Voltei para o meu cômodo de rapaz solteiro; acendi um charuto; estirei-me no canapé e dispus-me a esperar pela hora.
— Mas , pensei já à noite, quem sabe se Ester não exagerou a cousa?… Ela é um pouquinho imaginosa… Pode ser que, se eu falasse ao tutor de certo modo…
Hein? Sim! É bem possível que o homem se convencesse e… Em todo o caso, que diabo, nada perderia eu em tentar!… Seria até muito digno de minha parte…
— Está dito! resolvi, enterrando a cabeça entre os travesseiros. Amanhã procuro-o; faço-lhe o pedido com todas as formalidades; se o estúpido negar —
insisto, falo, discuto; e, se ele, ainda assim, não ceder, então bem — Zás ! Morreu !
Acabou-se !
No dia imediato, de casaca e gravata branca, entrava eu na sala de visitas do meu homem.
Era domingo, e apesar de uma hora da tarde, ouvi barulho de louça lá dentro.
Mandei o meu cartão. Meia hora depois apareceu-me o velhote, de rodaque branco, chinelas, sem colete, palitando os dentes. A gravidade do meu trajo desconcertou-o um tanto. Pediu-me desculpa por me receber tão à frescata, ofereceu-me uma cadeira e perguntou=me ao que devia a honra daquela visita.
Que, lhe parecia, tratava=se de cousa séria…
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— Do que há de mais sério, senhor comendador Furtado! Trata-se da minha felicidade ! Do meu futuro ! Trata-se da minha própria vida !…
— Tenha a bondade de pôr os pontos nos ii…
— Venho pedir-lhe a mão de sua filha…
— Filha ?
— Quer dizer: sua pupila…
— Pupila !…
— Sim, sua adorável pupila, a quem amo, a quem idolatro e por quem sou correspondido com igual ardor! Se ela não o declarou ainda a V.Sa. é porque receia com isso contrariá-lo; creia, porém, senhor comendador, que…
— Mas, perdão, eu não tenho pupila nenhuma !
— Como? E D. Ester?…
— Ester?!…
— Sim ! A encantadora, a minha divina Ester! Ah! Ei-la! É essa que aí chega !
exclamei, vendo que a minha estremecida vizinha surgiu na saleta contígua.
— Esta ?!… balbuciou o comendador, quando ela entrou na sala, mas esta é minha mulher !…
Fim
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