Borboletas doidejavam, como pétalas vivas de flores animadas que se desprendessem da haste.

Tomei a minha xícara de café quente e acendi um cigarro, disposto à leitura dos jornais do dia. Mas, ao levantar os olhos para certo lado da vizinhança, dei com os de alguém que me fitava; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário, e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso; e, ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã daquele Abril, ou porque aquela manhã era alegre e animadora como o sorriso que dasabotoou nos lábios da minah vizinha, o certo foi que neste dia escrevi os meus melhores versos e no seguinte conversei a respeito destes com a pessoa que os inspirou.

Chamava-se Ester, e era bonita. Delgada sem ser magra; morena, sem ser trigueira; afável, sem ser vulgar: uns olhos que falavam todos os caprichosos dialetos da ternura; uma boquinha que era um beijo feito de duas pétalas; uns dentes melhores que as jóias mais valiosas de Golconda; cabelos mais lindos do que aqueles com que Eva escondeu o seu primeiro pudor no paraíso.

Fiquei fascinado. Ester enleou-me todo nas teias da sua formosura, penetrando-me até ao fundo da alma com os irresistíveis tentáculos dos seus dezesseis anos. Desde então conversamos todos os dias, de janela contra janela.

Disse-me que era solteira, e eu jureu que seríamos um do outro.

Perguntei-lhe uma vez se me amava, e ela, sorrindo, atirou-me com um bogari que nesse momento trazia pendente dos lábios.

Aí! Sonhei com a minha Ester, bonita e pura, noites e noites seguidas.

Idealizei toda uma existência de felicidade ao lado daquela meiga criatura adorável; até que um dia, já não podendo resistit ao desejo de vê-la mais de perto, aproveitei-me de uma casa à sua contígua, que estava para alugar, e consegui, galgando o muro do terraço, cair-lhe aos pés, humilde e apaixonado.

— Ui ! Que veio o senhor fazer aqui? perguntou-me trêmula, empalidecendo.

— Dizer-te que te amo loucamente e que não sei continuar a viver sem ti!

suplicar-te que me apresente a que devo pedir a tua mão, e que marques um dia para o casamento, ou então que me emprestes um revólver e me deixes meter aqui mesmo duas balas nos miolos!

Ela, em vez de responder, tratou de tirar-se do meu alcance e fugiu para a porta do terraço.

— Então?… Nada respondes?… inquiri no fim de alguns instantes.

— Vá-se embora, criatura!

— Não me amas?

— Não digo que não; ao contrário, o senhor é o primeiro rapaz de quem eu 2

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gosto, mas vá-se embora, por amor de Deus!

— Quem dispõe de tua mão?

— Quem dispõe de mim é meu tutor…

— Onde está ele? Quem é? Como se chama?

— Chama-se José Bento Furtado. É capitalista, comendador, e deve estar agora na praça do comércio.

— Preciso falar-lhe.

— Se é para pedir-me em casamento, declaro-lhe que perde o seu tempo.

— Por quê?

— Meu tutor não quer que eu case antes dos vinte anos e já decidiu com quem há de ser.

— Já?! Com quem é?

— Com ele mesmo.

— Com ele? Oh! E que idade tem seu tutor?

— Cinqüenta anos.

— Jesus! E a senhora consente?…

— Que remédio! Sou órfã, sabe? De pai e mãe… Teria ficado ao desamparo desde pequenina se não fosse aquele santo homem.

— É seu parente?

— Não, é meu benfeitor.

— E a senhora ama-o?…

— Como filha sou louca por ele.

— Mas esse amor, longe de satisfazer a um noivo, é pelo contrário um sério obstáculo para o casamento… A senhora vai fazer a sua desgraça e a do pobre homem!

— Ora! O outro amor virá depois…

— Duvido!

— Virá à força de dedicação por parte dele e de reconhecimento por minha parte.

— Acho tudo isso imoral e ridículo, permita que lho diga!

— Não estamos de acordo.

— E se eu me entender com ele? Se lhe pedir que me dê, suplicar, de joelhos, se preciso for?… Pode ser que o homem, bom, como a senhora diz que é, se compadeça de mim, ou de nós, e…

— É inútil! Ele só tem uma preocupação na vida: ser meu marido!

— Fujamos então!

— Deus me livre! Estou certa de que com isso causaria a morte do meu benfeitor!

— Devo, nesse caso, perder todas as esperanças de…?

— Não! Deve esperar com paciência. Pode bem ser que ele mude ainda de idéia, ou, quem sabe? Pode ser que morra antes de realizar o seu projeto…

— E acha a senhora que esperarei, sabe Deus por quanto tempo! Sem sucumbir à violência da minha paixão?…

— O verdadeiro amor a tudo resiste, quando mais ao tempo! Tenha fé e constância é só o que lhe digo. E adeus.