As Aventuras de Huckleberry Finn (L&PM Editores)

Nota da tradutora
O desafio de traduzir As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, não é pequeno. A narrativa se passa na região do rio Mississippi em meados do século XIX, e o autor emprega com desenvoltura os termos específicos da vida ao longo do rio, além de reproduzir, baseado na sua familiaridade com os habitantes das margens, os dialetos então existentes, conforme alerta em nota no início do livro. A leitura revela que os vários personagens que Huck encontra na sua viagem são caracterizados principalmente pela maneira de falar. Assim, à dificuldade da tradução de termos próprios da vida naquela região numa determinada época, soma-se o impasse de como reproduzir em português os vários dialetos do original.
Para ilustrar a dificuldade com os termos pertinentes ao rio Mississippi: Huck e Jim sempre amarram a balsa em towheads quando precisam parar ao longo de seu percurso. Como o autor explica no texto, towhead é um banco de areia coberto de densa vegetação, em geral choupos. Mas para que as andanças de Huck e Jim se tornem claras ao leitor, é preciso enfatizar o caráter insular desses bancos de areia, quase sempre bem afastados das margens.
Outro termo controverso, devido às mudanças de significado ocorridas em várias épocas, é o modo como todos no livro se referem aos negros. A palavra nigger incorporou com o passar dos anos uma carga de ódio que não tinha no tempo de Mark Twain, muito menos no tempo da narrativa. Àquela época, tratava-se apenas de uma forma comum de se referir aos negros. O próprio Mark Twain não empregava o termo, considerado de mau gosto pelas pessoas cultas, mas as personagens das aventuras de Huck são em geral pessoas pobres, sem estudo. No início do trabalho, traduzi nigger por negro ou preto, porque assim me parecia exigir o contexto. A obra-prima de Twain não é um livro racista – a narrativa descreve uma sociedade escravocrata com todos os seus defeitos, mas o tom predominante é de respeito e simpatia pelos negros. Quando, com a tradução já em andamento, encontrei a informação de que a palavra não era ofensiva na época, vi confirmada a minha opção de tradução, bem como a insensatez de quem quer “limpar” o texto mudando o termo (como a editora norte-americana New South que, no início de 2011, anunciou o projeto de publicar uma nova edição de Huck Finn com todas as ocorrências da palavra nigger substituídas por slave – escravo –, seguindo conselho de Alan Gribben, estudioso da obra do autor). Isso implicará um duplo erro: alguém se achar no direito de alterar um clássico introduzindo nas palavras de Huck-Mark Twain um ódio que elas jamais tiveram.
A reprodução dos dialetos em português foi inevitavelmente apenas uma aproximação. O modo de falar dos negros sobressai na narrativa por ser expresso num inglês muito deturpado, a ponto de dificultar a leitura. À exceção de dois figurantes que deixam escapar apenas uma ou duas frases curtas, o único negro a ter longos diálogos com Huck é seu companheiro Jim. Mas como Jim é o segundo personagem em importância, só perdendo para o próprio Huck, suas falas é que deram mais trabalho para que soassem em português com igual estranheza de sons e significados. O inglês contém resquícios do falar dos escravos similares aos que são encontráveis em nossa língua; por exemplo, o mars deles corresponde ao nosso “sinhô” ou “nhô”, porém, as características mais marcantes do dialeto dos negros são as que desfiguram a pronúncia culta da língua.
E, sem dúvida, a maneira de falar de Huck foi a que recebeu mais atenção, porque Huck é o narrador que descortina diante do leitor o mundo ao longo do Mississippi. Sem apresentar as deturpações gritantes da fala dos negros, seu linguajar é o de um menino de pouca instrução, cheio de erros gramaticais e expressões populares. Uma linguagem bastante concreta, colorida, viva, de alguém que gosta de inventar e contar histórias. Só que, diferentemente de Tom Sawyer, que fantasia ao arquitetar e viver suas aventuras, Huck prima pelos detalhes objetivos, procurando contar o que realmente tem diante dos olhos. Aliás, o contraste entre as maneiras de narrar dos dois meninos é uma das facetas interessantes do livro. O estilo mais realista de Huck é responsável pelos quadros extremamente vivos da sociedade que ele encontra às margens do rio – um panorama tão crítico quanto cômico porque expõe sem rodeios todas as muitas contradições dessa sociedade.
Quando Mark Twain era vivo, o livro foi criticado e censurado por ser considerado imoral, em parte por causa das várias mentiras que Huck se esmera em contar para se safar de apuros. Em sua Autobiography of Mark Twain (o primeiro de três volumes foi publicado pela University of California Press em novembro de 2010 no centenário da morte do autor), essas críticas são respondidas com a verve característica do escritor: num diálogo com o funcionário de uma biblioteca da qual As aventuras de Huckleberry Finn havia sido retirado das estantes, ele desconcerta o sujeito ao afirmar que a Bíblia também deveria ser proibida por ser muito imoral e fala de passagens bíblicas que os meninos leem às escondidas, o que o próprio funcionário decerto fizera quando criança. Diante da negativa veemente de seu interlocutor, Mark Twain replica que ele está mentindo e que, portanto, deve estar lendo Huckleberry Finn e seguindo seu péssimo exemplo.
Huck inventa e encena suas mentiras com engenho e arte, e fica até muito sem graça quando um personagem o acusa de não saber mentir. No fundo, as mentiras são sua forma de lidar com o mundo dos adultos mantendo-se fiel ao seu coração, que deseja escapar de quem procura “civilizá-lo”. O que ele busca é ver-se livre das roupas que apertam e lhe tolhem os movimentos. Como Jim, é liberdade o que ele quer. Nesse sentido, as críticas à falta de moral no livro surpreendem, porque a liberdade que Huck vai conquistando pelo rio é para valer. A cada novo episódio, sozinho e com a valentia de seus poucos anos, ele enfrenta dilemas morais espinhosos. É o preço a pagar pela vida que deseja levar: ter de decidir como agir, certo ou errado, para o bem ou para o mal, sem recorrer cegamente a normas estabelecidas.
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