Petersburg. Logo a seguir, entrou o advogado Riverson, uma pessoa notável, que tinha chegado recentemente ao município, vinda de um lugar muito distante; depois a garota que era considerada a mais bonita do lugar, seguida por um bando de amigas, todas ostentando vestidos de verão cheios de fitas; então vieram as outras moças da cidadezinha que eram bonitas o bastante para partir os corações dos rapazes; mais adiante, entraram os jovens empregados do comércio local, todos juntos também, porque tinham ficado parados no alpendre da igreja balançando as bengalas, uma verdadeira muralha de admiradores de olhares ternos e cabelos untados de óleo, até que a última das belas garotas tivesse recebido deles toda a adoração que merecia. Depois que todos estes haviam entrado, chegou o menino modelo da aldeia, Willie Mufferson, de braço dado com a mãe e demonstrando ter os maiores cuidados para com ela, como se fosse feita de vidro. Ele sempre trazia sua mãe até a igreja e era o queridinho de todas as matronas. Era tão bonzinho que todos os meninos o odiavam, principalmente porque estavam sempre comparando o procedimento dele de maneira desfavorável ao comportamento de todos os outros. Willie tinha o costume de usar um lenço branco no bolso traseiro das calças e deixava uma ponta bem comprida aparecendo por baixo da aba do casaco, proeza que repetia todos os domingos, fingindo que a ponta do lenço tinha ficado para fora por acidente. O próprio Tom não tinha lenço nenhum e achava que qualquer menino que tivesse era um exibido metido a besta. Agora que a congregação estava toda reunida, o sino tangeu mais uma vez, para avisar aos retardatários e aos preguiçosos; e então um silêncio solene caiu sobre a igreja, quebrado unicamente pelos cochichos e risadinhas nervosas do coro posicionado na galeria. Os cantores do coro passavam sussurrando e dando risadinhas baixas durante todo o ofício. Uma vez eu ouvi falar em um coro de igreja que não era assim mal-educado e passava o ofício inteiro em silêncio respeitoso, salvo nas horas em que devia cantar, mas já me esqueci em que cidade era e em que época foi isso. Mas é quase certo que esse coro existiu há muito tempo atrás e devo confessar que não me lembro muito bem do que me contaram, mas deve ter sido em algum lugar no estrangeiro.

O Ministro disse o número do hino e leu toda a letra, declamando, com evidente prazer, em um estilo peculiar muito admirado nessa parte do país. Sua voz começava em um tom médio e ia subindo constante mas firmemente, até atingir um certo ponto, em que se destacava com forte ênfase a palavra mais alta, baixando subitamente o tom a partir dela, como se tivesse saltado de um trampolim:

Todo o povo o considerava um magnífico leitor. Nas reuniões da Sociedade Auxiliadora de Senhoras ele era sempre chamado para ler poesia. Cada vez que terminava um trecho, as dignas damas erguiam as mãos para o teto e deixavam-nas cair no colo; depois, arregalavam os olhos e sacudiam as cabeças, como se estivessem dizendo: “Não há palavras que possam expressar nossa admiração; é muito bonito, bonito demais para este mundo mortal”.

Depois que o hino foi cantado, o reverendo sr. Sprague transformou-se em um quadro de avisos humano e leu as “notícias” de reuniões e sociedades religiosas e outras coisas, parecendo que a lista ia se estender até o estrondar do Juízo Final – um estranho costume que ainda é mantido nas igrejas da América, mesmo nas cidades, nesta época em que existem tantos jornais e as igrejas imprimem precariamente seus próprios boletins paroquiais. Mas é frequente que seja justamente a falta de razões para justificar um costume tradicional que torne tão difícil livrar-se dele.

Depois, o Ministro rezou. Foi uma boa e generosa oração, cheia de detalhes: suplicava que a proteção divina se derramasse sobre a Igreja e pelos pequenos Filhos da Igreja; intercedia pelas outras igrejas da aldeia; pela própria aldeia, pelo município e pelo estado; pedia a proteção divina para todas as autoridades e que as bênçãos de Deus se derramassem sobre os Estados Unidos da América; solicitava a proteção divina para o Congresso Americano, para o Presidente e ainda para todos os Ministros de Estado; pedia que Deus se lembrasse dos pobres marinheiros sacudidos por mares tempestuosos; que tivesse pena dos infelizes milhões de pessoas oprimidas e gemendo sob o tacão das botas das monarquias europeias ou sofrendo a arrogância dos déspotas orientais; que esclarecesse todos aqueles que enxergaram a luz e escutaram as boas-novas e todavia não tiveram olhos para ver nem ouvidos para ouvir Suas mensagens e conservá-las em seus corações; e que espalhasse Sua Luz Divina sobre os pagãos que habitavam nas distantes ilhas do mar; e concluiu com uma súplica para que as palavras que estava a ponto de proferir fossem abençoadas com graça e favor e se transformassem na Boa Semente lançada sobre solo fértil, produzindo no devido tempo a Colheita do Bem que haveria de encher todos os corações de Gratidão. Amém.

Ouviu-se o farfalhar dos vestidos sobre os assentos e encostos dos bancos, e a congregação, que havia permanecido de pé durante a prece, sentou-se. O menino cuja história este livro relata não gostou da reza, apenas a suportou. Entretanto, ele se remexeu durante toda a longa alocução; ficou contando inconscientemente todos os detalhes da oração – que, na realidade, nem estava escutando, porque conhecia bem o terreno e sabia qual era a rota habitual do clérigo através dele –, e quando uma pequena variação foi introduzida, seu ouvido a detectou de imediato e sua natureza inteira encheu-se de ressentimento. Ele considerava injustas as adições, como se o pastor estivesse proferindo uma zombaria com o objetivo direto de esgotar a sua paciência. No meio da oração, uma mosca tinha pousado no banco à sua frente, e ficou torturando seu espírito com a tranquilidade com que esfregava as patinhas dianteiras. O inseto abraçava sua própria cabeça e dava a impressão de que a estava lustrando tão vigorosamente como se não fizesse parte de seu próprio corpo, enquanto expunha o pescocinho tão fino que parecia um fio de cabelo; ele coçava as asinhas com suas patas traseiras e as apertava contra o corpo como se fossem as abas de uma sobrecasaca; dedicava-se a toda esta toalete tão calmamente como se estivesse na perfeita segurança de seu ninho. E realmente estava, porque as mãos de Tom ansiavam por agarrá-la, mas ele não ousava – ele sinceramente acreditava que sua alma seria instantaneamente lançada às profundezas do inferno, se fizesse uma coisa dessas durante a reza do pastor. Porém, no momento em que a sentença final foi proferida, sua mão começou a curvar-se e avançar lentamente para a frente; e no instante em que a congregação acabou de ecoar um sonoro “Amém!”, a mosca tinha se tornado uma prisioneira de guerra. Todavia, por desventura, sua tia observou-lhe o ato e obrigou-o a soltar o bichinho.

O Ministro leu o trecho da Bíblia que inspirava seu sermão e pôs-se a discorrer monotonamente sobre um assunto tão repetitivo que muitas cabeças começaram aos poucos a balançar de sono – mesmo que a prédica versasse sobre o fogo e o enxofre infinitos da condenação final, reduzindo os eleitos “predestinados”[1] a tão poucos, que praticamente não valia o esforço pela salvação. Tom ficou contando as páginas do sermão à medida que o Reverendo as virava; depois dos ofícios, ele sempre sabia de cor quantas páginas haviam sido lidas, mas raramente lembrava de qualquer outra coisa sobre o teor do discurso.

Entretanto, pelo menos desta vez ele ficou realmente interessado, mesmo que fosse por um curto período de tempo. O Ministro descreveu o grande cenário comovente da reunião dos exércitos do mundo naquele instante do Milênio em que o leão e o cordeiro se deitariam juntos e uma criança de peito os conduziria. Mas a melancolia, a lição e a moral contidas no grande espetáculo simplesmente não foram compreendidas pelo menino; ele somente pensava em como os personagens principais se destacavam na plataforma diante da assembleia das nações; seu rosto se iluminou com o pensamento e disse para si mesmo que gostaria de ser aquela criança, desde que o leão fosse manso.

Depois disso, ele começou de novo a sofrer, à medida que foi retomado o monótono argumento. Em certo momento, ele se recordou de um tesouro que tinha no bolso e tirou-o para fora.