E daí que ninguém tenha morrido? Você não sabe que Gracie Miller levou um tombo na cozinha e caiu no fogo e se queimou toda logo no sábado seguinte?
– Pois é, mas ela não morreu. E tem mais, ela já tá ficando boa.
– Tudo bem, você não perde por esperar. Ela está perdida e já se foi, do mesmo jeito que Muff Potter está marcado e vai também. É isso que os negros dizem e eles sabem muito bem desse tipo de coisas, Huck.
Só então eles se separaram, cada um mergulhado em seus próprios pensamentos.
Quando Tom se arrastou através da janela para dentro de seu quarto, a noite já estava quase no fim. Ele se despiu com o máximo de precaução e adormeceu congratulando-se, porque tinha passado a noite fora e ninguém tinha percebido sua escapada. Ele não se deu conta de que Sid, embora ressonasse delicadamente, estava muito bem desperto já fazia uma hora.
Mais tarde, quando Tom acordou, Sid já se havia vestido e não estava mais no quarto. A luz do sol dava a impressão de que o dia já havia avançado bastante – de fato, havia uma atmosfera geral de atraso. O menino assustou-se. Por que não o haviam chamado? Por que não haviam insistido até que ele levantasse, como faziam sempre? O pensamento o encheu de inquietação, como um mau presságio. Em cinco minutos, estava vestido e já descera a escada, sentindo dores pelo corpo e ainda louco de sono. A família estava sentada à mesa, mas já haviam tomado o café. Não houve a menor palavra de reprovação, mas ninguém olhou para ele. Havia um silêncio sepulcral e o ar estava cheio de uma tal solenidade que o coração do criminoso foi ficando completamente gelado. Ele sentou-se em seu lugar costumeiro e tentou parecer alegre, mas era o mesmo que subir uma ladeira empurrando uma barrica cheia d’água. Ninguém retribuiu seus sorrisos, ninguém respondeu a suas perguntas, até que finalmente, também ele ficou silencioso e seu coração foi descendo no peito até mergulhar na inquietação e na tristeza.
Depois que tomou café, sua tia chamou-o e Tom quase se alegrou com a perspectiva de levar uns varaços; mas nada disso ocorreu. Sua tia chorou e lamentou-se, perguntando-lhe como ele tinha coragem de cortar-lhe a alma e partir-lhe o coração daquele jeito; finalmente, disse que ele podia ir embora e arruinar-se como melhor lhe agradasse, que não tinha a menor importância que ele fizesse seus cabelos brancos descerem à sepultura de tanta tristeza, que tudo era inútil, ela não iria mais tentar educá-lo; ao contrário, ia “largá-lo de mão”. Isso era pior do que se tivesse levado mil chicotadas: o coração de Tom doía-lhe agora mais que todos os músculos de seu corpo. Ele chorou e pediu perdão, prometeu corrigir-se vezes sem conta, e então foi liberado, percebendo que havia recebido apenas uma absolvição parcial e que a confiança da tia em seu futuro comportamento permanecia ainda muito frágil.
Ele saiu da presença dela sentindo-se tão miserável que nem sequer sentiu raiva de Sid por havê-lo denunciado. Deste modo, a rápida retirada do outro através do portão dos fundos foi totalmente desnecessária. Tom foi caminhando lentamente para a escola, cheio de tristeza e melancolia e levou uma nova sova do professor com toda a humildade, junto com Joe Harper, por terem matado a aula no dia anterior. Seu aspecto era o de um pobre infeliz, que tem o coração sofrido demais para dar importância a uma coisa tão trivial quanto uma surra. Após sofrer o castigo em silêncio, foi para seu lugar, colocou os cotovelos sobre a tábua, pôs o queixo nas palmas das mãos e ficou olhando para a parede com um olhar de sofrimento que parecia esculpido em pedra: uma tristeza tão intensa que havia atingido o limite da capacidade humana e não podia mais ser suportada. Então percebeu que seu cotovelo estava apertado contra algum objeto bastante duro. Depois de um longo tempo, lenta e tristemente modificou sua posição e apanhou o referido objeto com um suspiro. Estava enrolado em um papel. Ele o desenrolou. Um suspiro ainda mais longo, comprido e lamentoso saiu de seu peito, porque seu coração partido se havia quebrado em fragmentos ainda menores. Era justamente a sua maçaneta de bronze, que em outros tempos encabeçara um atiçador de lareira! Sentiu-se como se esta fosse a pena final que quebrou as costas do camelo.[4]
[1]. Variedade de argila que, entre outras coisas, é usada para fazer o lápis vermelho. Algumas pessoas ainda costumam chamá-lo de “giz de alfaiate”. Com referência à frase anterior, até hoje é comum nos Estados Unidos o emprego de retângulos de madeira como telhas. (N.T.)
[2].
1 comment