Sid percebeu que Tom nunca quis assumir o papel de juiz nesses jogos, embora fosse seu hábito liderar todas as novas brincadeiras. Ele percebeu, também, que Tom nem ao menos quis participar como testemunha – isso era muito estranho; Sid tampouco deixou passar o fato de que Tom chegava a demonstrar uma aversão aberta a estes inquéritos. Na verdade, só chegava perto deles se não pudesse evitar. Sid ficou muito admirado, mas não disse nada. Todavia, até mesmo interrogatórios judiciais saem de moda mais cedo ou mais tarde, e quando os colegas se cansaram da representação, a consciência de Tom também cessou de ser torturada.

Durante este tempo de tristeza, cada dois ou três dias Tom esperava uma oportunidade e então chegava até a janelinha gradeada da cela, contrabandeando pequenos confortos para o “assassino”. A cadeia era uma pequena construção de tijolos que, na verdade, não apresentava muita segurança, nem teria prendido qualquer criminoso que estivesse determinado a fugir. Ficava localizada em um banhado nos arredores da cidadezinha e nem ao menos tinha guardas, mesmo porque raramente era ocupada. Estes pequenos presentes serviam mais para dar um pequeno alívio à consciência de Tom. Os aldeãos estavam com bastante vontade de agarrar Injun Joe e cobri-lo de alcatrão e penas (como era o costume da época) e atirá-lo em um vagão de carga que o levasse para bem longe, porque ninguém duvidava de sua participação no roubo do cadáver. Mas sua aparência era tão assustadora e seu caráter tão terrível que ninguém estava disposto a liderar a empreitada, de modo que a ideia foi posta de lado. Além disso, ele havia sido muito cuidadoso e começara tanto sua acusação como o depoimento no inquérito com a história da briga, sem realmente confessar a abertura do túmulo e a retirada do cadáver que a haviam precedido; portanto, nem sequer valia a pena levá-lo ao tribunal para acusá-lo dessa parte.



[1]. A intenção do Dr. Robinson, naturalmente, era a de estudar o cadáver para desenvolver praticamente suas noções de anatomia, que nas escolas de Medicina daquela época eram ensinadas somente a partir de livros. (N.T.)

Capítulo 12

Uma das razões por que a mente de Tom se havia desviado de seus problemas secretos era que encontrara um novo assunto importante o suficiente para prender-lhe todo o interesse. Becky Thatcher tinha parado de vir à escola!… Tom lutara consigo mesmo durante alguns dias até vencer seu orgulho e depois fora até a casa dela e ficara assobiando para que saísse, mas sem resultado. Começou a rondar a casa do pai dela durante as noites, sentindo-se totalmente miserável. Ficou sabendo que ela estava doente. E se a menina morresse? Esta possibilidade interferia em todos os seus pensamentos e impedia todas as suas distrações costumeiras. Não se interessava mais pelas guerras semanais e nem ao menos queria mais ser pirata. Todo o encanto da vida havia desaparecido, somente restava uma monotonia sem fim. Guardou o arco que costumava empurrar pelas ruas com uma varinha de ferro; esqueceu o bastão que usava para bater bola – não havia mais alegria nestes jogos infantis. Sua tia começou a se preocupar; pior ainda, começou a experimentar nele todos os tipos de remédios. Tia Polly era uma dessas pessoas que acreditava em remédios consagrados, mas ao mesmo tempo trazia para casa todas as novidades que apareciam no boticário para fortalecer a saúde ou para curar doenças. Ela era uma experimentadora inveterada de todas estas drogas. Quando aparecia um preparado novo, ela ficava tremendamente ansiosa por uma oportunidade de aplicá-lo; não nela mesma, naturalmente, porque nunca adoecia nem sentia o menor incômodo, mas em qualquer paciente que lhe caísse nas mãos. Assinava todas as revistas “de saúde” e acreditava em todas as fraudes frenológicas; mas a solene ignorância de que estavam cheias estas doutrinas e publicações era como o mais puro oxigênio em suas narinas. Todas as tolices que elas continham a respeito de ventilação adequada, sobre a hora e maneira de ir para o leito, a hora e maneira de se levantar, o que comer, o que beber, qual a quantidade de exercício diário a realizar e qual a disposição do espírito a manter e que tipo de roupa se deveria usar – tudo lhe parecia tão certo como as verdades do Evangelho, e nunca observava que as revistas de saúde do mês corrente em geral contrariavam em tudo o que haviam recomendado no mês anterior. Como tinha um coração puro e era tão honesta como a luz do dia, era uma vítima fácil para estas vigarices. Ela colecionava suas revistas cheias de charlatanerias e seus sortimentos de remédios de fancaria; e assim armada para a luta contra a morte, “montava em seu pálido cavalo de batalha”, falando metaforicamente, e saía a combater as forças malignas do Inferno, origem de todas as moléstias. Ela nunca suspeitava que seus vizinhos sofredores pudessem considerá-la uma coisa muito diferente do que o anjo da cura e a portadora do bálsamo de Gilead.[1]

O “Tratamento pela Água” era novo na época, e a infelicidade de Tom, que ela interpretava como um sinal de debilidade física, veio como uma bênção dos céus.