O rosto do pobre camarada estava desfigurado e seus olhos mostravam todo o medo que o invadira. No momento em que o fizeram parar diante do homem assassinado, ele começou a tremer como se tivesse um ataque de malária, levou as mãos ao rosto e irrompeu numa torrente de lágrimas.
– Não fui eu, meus amigos! – soluçou. – Dou minha palavra de honra que não fui eu!
– E quem foi que o acusou? – gritou uma voz.
Esta advertência pareceu entrar-lhe até o fundo da alma. Potter ergueu a cabeça e lançou a vista ao redor com um olhar tão desesperançado que causava dó. Avistou Injun Joe e exclamou:
– Oh, Injun Joe, meu amigo, você prometeu que nunca…
– Esta faca é sua? – falou o xerife, estendendo o braço subitamente diante dos olhos de Potter, com a faca na palma da mão.
Nesse momento, o infeliz afrouxou as pernas e poderia ter tombado ao solo, se alguns dos presentes não o tivessem agarrado com todo o cuidado e não o ajudassem a sentar-se no chão. Então, ele disse:
– Bem que eu achava que se não voltasse pra pegar ela…
Seu corpo foi sacudido por um tremendo estremeção e então balançou a mão direita, que parecia completamente sem controle, em um gesto que revelava sua completa derrota e acrescentou:
– Conte a eles, Joe, conte a eles… Agora não adianta mais.
Foi então que Huckleberry e Tom ficaram parados ali, mudos e de olhar fixo, escutando aquele mentiroso de coração de pedra desfiar uma declaração serena, esperando a qualquer momento que o céu azul se abrisse e lançasse um dos raios de Deus sobre a cabeça do bandido, sem entender por que o castigo estava demorando tanto. E quando ele terminou o depoimento e continuou parado em pé, aparentemente gozando de perfeita saúde, o nobre mas vacilante impulso que haviam sentido para quebrar o juramento feito um ao outro a fim de salvar a vida do pobre prisioneiro traído foi se enfraquecendo cada vez mais, até que se desvaneceu completamente. Os meninos sentiram que não havia a menor dúvida de que aquele criminoso tinha vendido a alma a Satanás e seria fatal interferir com a propriedade de um ser tão poderoso.
– Por que você não fugiu? Por que resolveu voltar aqui? – indagou alguém.
– Não pude evitar, não pude evitar – gemeu Potter. – Bem que eu queria fugir, mas não conseguia ir a parte alguma e tive de voltar aqui – disse ele, explodindo novamente em soluços.
Alguns minutos mais tarde, durante o inquérito oficial, Injun Joe repetiu sua declaração, com a mesma calma de antes e sob juramento; e os meninos, vendo que os relâmpagos ainda não haviam coriscado nos céus, tiveram confirmada sua crença de que Joe estava a serviço do Diabo. De fato, ele havia agora se transformado a seus olhos no objeto mais apavorantemente interessante que jamais tinham visto e não conseguiam afastar seus olhos fascinados de sua face. Intimamente, os dois resolveram vigiá-lo durante as noites, quando uma oportunidade se oferecesse, na esperança de darem uma espiadela em seu terrível mestre.
Injun Joe ajudou a levantar o corpo do homem assassinado e a colocá-lo dentro de uma carroça a fim de ser removido; e foi murmurado através da multidão arrepiada que a ferida começara de novo a sangrar! Os meninos pensaram que esta feliz circunstância orientaria as suspeitas na direção correta; mas nisto ficaram desapontados, porque mais de um aldeão observou:
– Ele estava a um metro de distância de Muff Potter quando começou a sangrar!
O apavorante segredo e a consciência culpada de Tom perturbaram-lhe o sono por mais de uma semana a partir desse dia, até que, em certa manhã, Sid reclamou:
– Tom, você se remexe tanto na cama e não para de falar dormindo. Metade do tempo, eu nem consigo mais dormir!
Tom ficou muito branco e baixou os olhos.
– Mau sinal – disse tia Polly, com toda a gravidade. – O que você tem em mente, Tom? O que está a perturbá-lo?
– Nada. Nada que eu saiba.
Porém a mão que segurava a xícara tremeu ao ponto de derramar-lhe o café.
– E você fala uns troços tão estranhos – disse Sid. – Na noite passada você começou a dizer: “É sangue, é sangue, eu sei que é sangue”. Você falou isso uma porção de vezes. Ah, e você também disse: “Não me torture assim, prometo que vou contar”. Contar o quê? O que é que você prometeu que ia contar?
Tom teve a impressão de que a mesa, os armários, as pessoas e a sala inteira estavam girando ao redor dele, como se tudo estivesse flutuando dentro d’água. Qualquer coisa poderia ter ocorrido nesse momento, mas felizmente a preocupação desapareceu da face de tia Polly e ela veio aliviar o embaraço do menino, sem a menor noção do que estava fazendo. Ela disse:
– Ora! Foi esse horrível assassinato. Eu mesma estou sonhando com isso quase todas as noites. Houve até uma vez em que eu sonhei que era a assassina.
Mary acrescentou que ela mesma tinha sido afetada de uma forma semelhante. Sid pareceu satisfeito. Tom saiu da presença da tia assim que pôde fazê-lo sem despertar mais suspeitas. Depois disso, queixou-se de dor de dente por uma semana, amarrando o queixo com um lenço antes de ir deitar-se. O que ele não sabia é que Sid o vigiava todas as noites e frequentemente desatava a bandagem, depois, apoiado nos cotovelos, escutava os delírios de Tom por longas horas, colocando novamente o lenço no lugar quando estava satisfeito. O sofrimento mental de Tom começou a desvanecer-se gradualmente e a pretensa dor de dente começou a chateá-lo e foi descartada, antes que sua tia pensasse em arrancar mais um. Se Sid realmente conseguiu entender alguma coisa a partir dos balbucios incoerentes de Tom, manteve o segredo para si próprio. O problema é que seus colegas de classe começaram a inventar “inquéritos judiciais” sobre a morte de gatos assassinados. Os “julgamentos” se sucediam um ao outro e pareceu a Tom que não iam se cansar nunca da brincadeira, mantendo suas atribulações sempre presentes em seu espírito.
1 comment