E olhe que, a maioria das vezes, outra pessoa tinha de ir atrás dele para ver por que estava demorando tanto. Tom disse:
– Escute, Jim, eu vou buscar a água se você pintar a cerca um pouquinho.
Jim sacudiu a cabeça e disse:
– Acho que nun vai dá, seu Tom. A dona veia ela me disse que eu tinha de ir buscá a água duma veiz só e não ficá de bobeira com ninguém. Ela diz que já tá esperano que seu Tom vai me pedir pra caiá o muro e entonce ela me diz muito especiarmente que eu cuido dos meu trabaio e num mi meto cum o sinhô, que ela merma cuida do sinhô e mais da caiação.
– Ora, não se preocupe com o que ela disse, Jim. É desse jeito que ela fala sempre. Me dá o balde – não vou demorar mais que um minuto. Ela nem vai ficar sabendo.
– Ai, eu num tenho corage, seu Tom. A dona veia ela vai pegá e me arrancá a cabeça fora. É craro que ela vai, ora se não!
– Ela? Ora, Jim, ela nunca bate em ninguém. O máximo que ela faz é bater na sua cabeça com o dedal, e quem é que se importa com isso? Você se importa de levar um croque na cabeça com um dedal? É claro que não, nem eu tampouco! Ela fala que parece que vai te arrancar a pele, mas conversa não tira pedaço de ninguém. Quer dizer, incomoda um pouco, mas só quando ela chora. Jim, eu te dou uma bolinha de gude. Eu te dou uma bolinha com uma risca branca atravessando o vidro!
Jim começou a vacilar.
– Risca branca, Jim. E é uma das grandes, uma das pesadas, as boas de nicar!…
– Minha nossa, essas são umas maravia linda de enchê os oio, eu é que digo. Só que tem, seu Tom, que eu tenho uma medunça das braba da dona veia…
Mas Jim era apenas um ser humano – essa atração foi forte demais para ele. Ele largou o balde e pegou a bolinha de gude com a risca branca. No minuto seguinte, ele estava voando rua abaixo, com o balde na mão e o traseiro ardendo, enquanto Tom pintava a parede vigorosamente e tia Polly se retirava vitoriosa do “campo de batalha”, com um chinelo na mão e triunfo no olhar.
Mas a energia de Tom não durou por muito tempo. Ele começou a pensar nas brincadeiras que tinha planejado para esse dia e sua tristeza foi aumentando cada vez mais. O pior era que, em seguida, os seus colegas da escola, que não tinham aulas no sábado, iam começar a passar por ali a caminho de todo o tipo de aventuras deliciosas e iam todos fazer troça dele porque estava trabalhando – só de pensar nisso seu rosto queimava como fogo. Retirou dos bolsos suas riquezas materiais e fez um balanço do estoque – pedaços de brinquedos, bolinhas de gude e lixo suficiente para trocar um trabalho por outro, quem sabe, mas nem de longe o bastante para comprar sequer meia hora de pura liberdade. Assim, ele retornou suas escassas riquezas para os bolsos e desistiu da ideia de tentar contratar alguns dos outros meninos. Foi neste momento de escuridão e desespero que uma inspiração explodiu em seu cérebro. Nada menos que uma grande e magnífica inspiração! Ele agarrou novamente a brocha e retornou tranquilamente ao trabalho. Em breve, apareceu Ben Rogers; dentre todos os meninos, justamente aquele cujo ridículo ele mais temia. Ben caminhava dando pulos, saltos e corridinhas – prova mais do que suficiente de que seu coração estava leve e cheio de planos para passar um dia muito agradável. Ele comia uma maçã e, nos intervalos entre as mordidas, soltava um apito longo e melodioso, seguido por uma série de “dindom, dindom, dindons”, como as badaladas de um sino, porque, de repente, tinha tido a ideia de representar um barco a vapor! Enquanto se aproximava, ele diminuiu a velocidade, chegou bem no meio da rua, inclinou-se nitidamente para estibordo e fez uma curva lenta e majestosa, com uma porção de floreios complicados, porque estava fazendo de conta que era o vapor Big Missouri e queria deixar bem claro aos espectadores que estava empurrando três metros d’água com a parte do casco que ficava abaixo da superfície! Ele era o barco, o capitão, a tripulação e os sinos de bordo combinados; assim, tinha de imaginar-se parado em sua própria cabine de comando varrida por furacões, dando as ordens sem hesitar e executando-as sem vacilação.
– Pare o barco, senhor! Lingue-lingue-lingue!
Quase não havia mais espaço na rua e ele deslizou lentamente em direção à calçada.
– Toda a força a ré! Lingue-lingue-lingue!
Seus braços se esticaram firmemente e desceram rígidos para os lados do corpo.
– Todo o leme a estibordo! Lingue-lingue-lingue! Tchou! Tcho-tchou-uou-tchou!
Sua mão direita, enquanto isto, descrevia círculos majestosos, porque estava representando uma roda lateral com doze metros de diâmetro.[1]
– Retornar o curso a bombordo! Lingue-lingue-lingue! Tchou-tcho-tchou-tchou!
Sua mão esquerda começou a descrever círculos.
– Parar a estibordo! Lingue-lingue-lingue! Parar a estibordo! Em frente a estibordo! Parar agora! Girar o casco lentamente! Lingue-lingue-lingue! Tchou-ou-ou! Lançar a âncora! Depressa com o cabrestante! Vamos lá – soltem o raio desse cabo, que diabos estão fazendo? Façam a curva ao redor daquele tronco grosso e amarrem bem a ponta! Fiquem a postos agora – soltem! Desligar os motores, senhor! Lingue-lingue-lingue! Chi-chi-chi-chi! Verificar os protetores das válvulas!
Tom continuou pintando calmamente. Não deu a menor bola para o vapor no meio da rua. Ben ficou olhando por um momento e então falou:
– Ei! Você aí! O que está fazendo nessa plataforma?
Tom não deu a menor resposta. Ao contrário, examinou a última pincelada da brocha como se fosse uma obra de arte. Depois, moveu delicadamente o pincel e examinou o resultado de novo.
1 comment