Sem se dar conta disso, ele tinha descoberto uma das principais leis que regem os atos humanos, ou seja, que para fazer um menino ou um homem cobiçar alguma coisa, basta tornar essa coisa difícil de obter. Se ele tivesse sido um grande e sábio filósofo, como o autor deste livro, teria agora compreendido que o trabalho é tudo aquilo que a pessoa é obrigada a fazer, e que a diversão é tudo aquilo que a pessoa não é obrigada a fazer.

E isto o teria ajudado a entender por que ganhar a vida fabricando flores artificiais em uma oficina pouco arejada ou subir horas a fio pelos degraus de uma roda de madeira para puxar a água necessária a fim de irrigar um campo é trabalho, enquanto jogar boliche somente para derrubar meia dúzia de garrafas ou escalar o Mont-Blanc nos Alpes europeus é considerado uma diversão. Há cavalheiros bastante ricos na Inglaterra que dirigem carruagens de passageiros puxadas por quatro cavalos durante quarenta ou cinquenta quilômetros ao longo de uma estrada poeirenta sob o sol de verão, somente porque o privilégio lhes custa uma boa quantia em dinheiro. Se por acaso alguém pensasse em lhes oferecer um salário para executar o mesmo serviço, recusariam ofendidos e desistiriam no mesmo momento, porque aí seria um trabalho.



[1]. Os grandes vapores que faziam a cabotagem fluvial (transporte de passageiros e mercadorias entre os portos) do sistema Mississippi-Missouri tinham grandes rodas laterais semelhantes a rodas de moinho, que eram acionadas pelos motores por meio de um eixo central e forneciam a força motriz para o navio através do movimento das pás, que empurravam a água para trás. Talvez o leitor já tenha visto alguns destes barcos no cinema ou na televisão. (N.T.)

Capítulo 3

Tom foi apresentar-se à tia Polly, que estava sentada junto a uma janela aberta, em uma agradável sala nos fundos da casa, que era quarto de dormir, sala de café, sala de jantar e biblioteca combinados em uma única peça. O ar embalsamado do verão, o silêncio repousante, o perfume das flores e o zumbido monótono das abelhas tinham realizado seu efeito conjunto e ela cochilava em vez de trabalhar no tricô que estava em seu colo. Sua única companhia era o gato (que se chamava Peter) e este estava adormecido, também em seu colo, encostado em um novelo de lã… Seus óculos tinham sido empurrados para o alto da cabeça, por uma questão de segurança. A essa altura, ela pensava que Tom provavelmente tinha desertado do serviço há bastante tempo, e ficou muito surpreendida quando o garoto se apresentou diante dela de uma forma tão corajosa. Foi então que ele indagou:

– Posso ir brincar agora, titia?

– O que, já? Qual a parte da cerca que você pintou?

– Já está toda pintada, titia.

– Tom, não minta para mim. Você parte meu coração quando faz isso.

– Eu não estou mentindo, titia. O serviço está pronto.

Tia Polly não depositou muita confiança nesta afirmação. Foi até a frente da casa para verificar pessoalmente. Para falar a verdade, teria ficado contente se vinte por cento da declaração de Tom fosse verdadeira. Quando ela viu que a cerca inteira tinha sido caiada e resplandecia de brancura – não somente pintada, mas elaboradamente recoberta por duas e até três mãos de cal, tendo até uma faixa pintada na calçada ao longo do rodapé, seu espanto foi quase inexprimível. Finalmente, ela disse:

– Santo Deus, eu nunca imaginei… Sou obrigada a reconhecer, você trabalha mesmo quando está com vontade, Tom! – Mas, no mesmo instante, tratou de diminuir o elogio, acrescentando: – O problema é que muito raramente você fica com vontade, também sou obrigada a dizer. Bem, pode ir brincar, mas trate de voltar esta semana mesmo, senão vou curtir seu couro.

Ela estava tão assombrada com o esplendor de sua realização, que o levou até o armário da copa e escolheu uma das melhores maçãs, entregando-a ao menino, enquanto improvisava um discurso sobre o valor especial que uma guloseima adquiria quando era obtida sem pecado e através de um esforço cheio de virtude e aprovado pela religião. E enquanto ela se aplicava a seu sermão, e antes que fechasse a porta do armário com um floreio digno das Santas Escrituras, o espertinho surripiou um pãozinho doce.

Logo depois, ele saiu saltitando e viu Sidney bem no momento em que este começava a subir pela escada externa que levava aos quartos do segundo andar. O chão estava cheio de torrões de terra e, num instante, o ar também se encheu deles. Os torrões metralharam ao redor de Sid como uma saraivada; e antes que tia Polly pudesse perceber o que se estava passando e correr em auxílio do pequeno, seis ou sete torrões tinham efetuado contato direto e Tom tinha pulado a cerca e desaparecido. Naturalmente havia um portão no meio dela, mas em geral ele estava com tanta pressa que não tinha tempo para utilizá-lo. Sua alma podia agora descansar em paz, pois havia acertado as contas com Sid depois que este tinha chamado a atenção da tia para a linha preta e lhe arranjado toda aquela incomodação.

Tom deu a volta no quarteirão e entrou em um caminho lamacento que passava ao lado do estábulo das vacas de sua tia. Logo sentiu-se em segurança, além do alcance de uma possível captura e castigo, e seguiu por caminhos tortuosos até a praça central do vilarejo, onde duas “companhias militares” de meninos tinham se reunido para travar batalha, de acordo com uma série de “tratados e entrevistas diplomáticas” anteriores. Tom era o general de um desses exércitos, enquanto Joe Harper (seu amigo do peito) era o general do outro. Estes dois grandes comandantes não condescendiam em participar pessoalmente dos combates – esta era uma tarefa que estava a cargo dos peixes pequenos que lhes estavam subordinados. Muito pelo contrário, ficavam sentados juntos em uma elevação que ficava de um dos lados da praça e conduziam as operações que estavam sendo travadas no campo de batalha por meio de comandos transmitidos por ordenanças. O exército de Tom teve uma grande vitória, depois de um longo e renhido combate. A seguir, contaram os mortos, trocaram os prisioneiros, acertaram os termos da próxima luta e escolheram o dia para uma nova batalha, que era absolutamente necessária a fim de resolver uma disputa permanente entre os dois regimentos. Depois disso os exércitos formaram esquadrões e marcharam para longe do campo da pugna, e Tom voltou para casa sozinho.

Enquanto passava pela casa em que morava Jeff Thatcher, viu uma garota no jardim que era nova na cidade – uma criaturinha linda de olhos bem azuis, com cabelos louros presos em duas longas tranças e usando um vestidinho branco de verão por cima de calções bordados.