Indicou-me o portão de uma imensa baia, e entendi que eu devia entrar.
Estava convencido, a essa altura, de que aqueles cavalos conseguiam domesticar espécies irracionais como os yahoos – talvez outras. E começava a suspeitar de que, de todos os reinos que havia visitado em minhas viagens, era aquele que iria me surpreender mais. Esse pressentimento iria se confirmar...
Dentro da baia, que era decorada com objetos, como se fosse uma sala de visitas, havia uma belíssima égua e dois potrinhos, de idades diferentes, sobre uma esteira de palha. A égua ergueu-se, encarou-me com desprezo e dirigiu-se indignada ao cavalo, que eu já considerava meu amigo. Mostrava-se bastante contrariada com minha presença ali, como se eu fosse... um ser inferior. Ela e o cavalo afastaram-se um pouco dos potros, enquanto discutiam. Vi então que ela estendia o pescoço, pela janela da baia, para os bichos peludos que executavam as tarefas, lá fora, e depois para mim, pronunciando o mesmo som: yahoo.
Não tive mais dúvidas do que estava acontecendo. Muito constrangido, encaminhei-me para o casal, fiz uma reverência, inclinando minha cabeça respeitosamente, e disse:
– É um prazer estar em sua casa, senhor e senhora! Lemuel Gulliver, para servi-los. Gulliver, navegante, cirurgião, capitão de navio deposto...
Até então, limitara-me a acompanhar o cavalo meu amigo, em silêncio. Quando me curvei diante da dona da casa e falei, ela empinou-se, apavorada. Batendo as patas vigorosamente no chão, desviou-se num galope e, a seguir, tangeu seus potrinhos, que também estavam muito espantados, para fora da baia, como se eu fosse a encarnação do demônio, bem ali na sua frente.
O cavalo meu amigo ficou paralisado. Por um instante, nos encaramos. Ele se aproximou de mim, muito cauteloso, farejou-me e fez uma careta. – Yahoo! – exclamou.
– Por favor, meu caro, não me confunda com aquelas criaturas peludas! Eu sou um... humano! Sabe o que é isso?
O cavalo relinchou. Depois, balançou a cabeça e me conduziu para uma outra baia, numa das pontas do longo edifício. Pelo menos, não me colocou na enorme jaula em que eram guardados os yahoos domesticados.
Depois desses primeiros incidentes, e à medida que fui aprendendo o idioma dos houyhnhnms, muita coisa se esclareceu. A não ser o cavalo meu amigo, entretanto, ninguém me aceitava; continuavam considerando-me um yahoo e, a meu amo, um transgressor das leis do reino, por estar mantendo uma relação de amizade e respeito comigo!
Os houyhnhnms eram extremamente civilizados. Prezavam a cortesia, a lealdade, a generosidade e o trabalho. Em seu país, havia total liberdade dos indivíduos, e todos respeitavam os direitos uns dos outros. O modo de vida deles me encantou.
Todas as tardes, eu e meu amigo nos sentávamos no gramado e nos entretínhamos em longas conversas. Ele já havia me confidenciado as críticas que recebia por isso, já que, para seus amigos e concidadãos, um yahoo não poderia ter inteligência bastante para conversar, nem histórias para contar – muito menos histórias que falassem de reinos onde os yahoos fossem os mandantes e os houyhnhnms, simples animais de carga e de transporte...
Várias vezes, meu amigo desafiara a todos para ouvir com que facilidade eu me expressava, o que poria abaixo as suas descrenças. Mas eles sempre recusaram, e acabamos desistindo de convencê-los. Um dia, entretanto, a situação agravou-se...
Meu dono foi convocado ao Conselho dos Houyhnhnms e voltou de lá abaladíssimo:
– Já que não aceito colocar você junto com os outros yahoos, o conselho sugeriu que lhe peça para sair deste reino. Veja, não sou obrigado a seguir a orientação do conselho. Entretanto, se não o fizer...
Eu já conhecia o suficiente dos costumes dos houyhnhnms para saber o que aquilo significava. Se meu amigo contrariasse o conselho, passaria a ser visto por seus próprios concidadãos como alguém incapaz de seguir e manter o bom funcionamento da sociedade dos houyhnhnms – um ser inferior. E, para eles, era preferível morrer!
Muito triste, encaminhei-me para a praia. Procurei até encontrar o bote que me trouxera e me fiz ao mar.
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