A não ser o cavalo meu amigo, entretanto, ninguém me aceitava; continuavam considerando-me um yahoo e, a meu amo, um transgressor das leis do reino, por estar mantendo uma relação de amizade e respeito comigo!
Os houyhnhnms eram extremamente civilizados. Prezavam a cortesia, a lealdade, a generosidade e o trabalho. Em seu país, havia total liberdade dos indivíduos, e todos respeitavam os direitos uns dos outros. O modo de vida deles me encantou.
Todas as tardes, eu e meu amigo nos sentávamos no gramado e nos entretínhamos em longas conversas. Ele já havia me confidenciado as críticas que recebia por isso, já que, para seus amigos e concidadãos, um yahoo não poderia ter inteligência bastante para conversar, nem histórias para contar – muito menos histórias que falassem de reinos onde os yahoos fossem os mandantes e os houyhnhnms, simples animais de carga e de transporte...
Várias vezes, meu amigo desafiara a todos para ouvir com que facilidade eu me expressava, o que poria abaixo as suas descrenças. Mas eles sempre recusaram, e acabamos desistindo de convencê-los. Um dia, entretanto, a situação agravou-se...
Meu dono foi convocado ao Conselho dos Houyhnhnms e voltou de lá abaladíssimo:
– Já que não aceito colocar você junto com os outros yahoos, o conselho sugeriu que lhe peça para sair deste reino. Veja, não sou obrigado a seguir a orientação do conselho. Entretanto, se não o fizer...
Eu já conhecia o suficiente dos costumes dos houyhnhnms para saber o que aquilo significava. Se meu amigo contrariasse o conselho, passaria a ser visto por seus próprios concidadãos como alguém incapaz de seguir e manter o bom funcionamento da sociedade dos houyhnhnms – um ser inferior. E, para eles, era preferível morrer!
Muito triste, encaminhei-me para a praia. Procurei até encontrar o bote que me trouxera e me fiz ao mar. Na areia, meu amigo empinou-se gloriosamente contra o sol, relinchando para se despedir de mim.
Depois de muitas reviravoltas da sorte, acabei recolhido por um navio, que me deixou em Lisboa, em 5 de novembro de 1715. Por toda a viagem, os marinheiros estranhavam o cheiro que meu corpo exalava. “Cheiro de cavalo!”, reclamavam. E eu, por meu lado, sentia-me quase agredido pelos seus modos grosseiros. “Os modos de um yahoo!”, reprovava eu, para mim mesmo.
Anos depois...
Sinto-me recompensado pela sorte. Apesar de muitos perigos e atropelos, me foi dado conhecer um mundo que poucos sabem que existe. Minha vida, afinal, foi uma grande aventura. Sempre tive vontade de contar minha história para os outros, mas temia que me tomassem por mentiroso. Afinal, sei que vi maravilhas nas quais é difícil às vezes para mim mesmo acreditar.
Mas o que importa o que pensem? O que importam as críticas que poderei receber? Nada... O que vivi, vivi! Está tudo gravado dentro do meu coração e, agora, neste livro.
Quem quiser continuar julgando que o mundo é apenas aquilo a que está acostumado a conhecer, que proceda assim! Quem quiser também acreditar que não passo de um louco ou de um mentiroso, que seja! Em meus sonhos, os liliputianos têm sua cidade, seu reino. Ou às vezes esses sonhos são interrompidos pelos gigantes de Brobdingnag ou pelos gemidos dos imortais de Luggnagg. E às vezes, também, quando a solidão me invade, sinto a presença do meu amigo houyhnhnm, bem ao meu lado. Como é óbvio, não tenho razão para mentir para mim mesmo, ainda mais em meus sonhos.
Fica, então, contada a história das minhas viagens. Que ela sirva, pelo menos, aos jovens, sempre abertos às novidades, para que imaginem quantos mundos mais podem muito bem existir – mundos que nem eu próprio cheguei a descobrir.
Luiz Antonio Aguiar
Escritor carioca, tem mais de 60 livros publicados, voltados para crianças e adolescentes. Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-RJ, já publicou vários artigos sobre literatura infantil e juvenil, literatura na escola e leitura na cultura de massas. É animador de oficinas de redação e de criação literária. Já ganhou vários prêmios, entre eles: Jabuti, 1994; cinco vezes o Altamente Recomendável FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil); Prêmio Adolfo Aizen, 1994; e Hors-concours – Melhor Livro Infantil e Juvenil, 1995.
Edição revisada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
© Adaptação: Luiz Antonio Aguiar
© Ilustrações: Roberto Caldas
Luiz Antonio Aguiar
Escritor carioca, tem mais de 60 livros publicados, voltados para crianças e adolescentes. Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-RJ, já publicou vários artigos sobre literatura infantil e juvenil, literatura na escola e leitura na cultura de massas.
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