Toda vez que eu tentava caminhar, ele se colocava à minha frente, barrando minha passagem. Ficamos alguns instantes entretidos nesse jogo, quando um outro galope se fez ouvir, dessa vez mais alto do que o anterior.
Eram dois cavalos que vinham se reunir ao primeiro. Ficaram os três, um diante do outro, trocando relinchos de um modo que, para meu espanto, mais parecia uma conversa. E era evidente que estavam discutindo sobre mim. De vez em quando, alongando o pescoço, um deles me designava para os outros, que sacudiam a cabeça, em sinal de assentimento ou de reprovação.
Comecei a reconhecer algumas palavras. Quando falavam de si, frequentemente pronunciavam a expressão houyhnhnm. Quando se referiam a mim, eu os ouvia dizer yahoo. Mais tarde, quando descobri que usavam para mim a mesma palavra que servia para designar os desagradabilíssimos bichos peludos, senti-me muito ofendido. Na verdade, ser confundido com um yahoo foi o que ocasionou minha desventura no reino dos houyhnhnms.
Após muita discussão, os dois cavalos que haviam chegado depois, aparentando estar bastante contrariados, retiraram-se galopando apressadamente. O cavalo que me salvara dos yahoos, então, indicou-me o caminho a seguir, por uma outra trilha, mais à frente.
Percorremos uns três quilômetros, até chegar a uma construção muito extensa, feita com troncos fincados no chão e com teto de palha. Por todo lado, eu via yahoos trabalhando, sob a vigilância de outros cavalos, que não deixavam de me fitar com um brilho de estranheza nos olhos.
O cavalo que me conduzia esperou que eu observasse o ambiente em volta. Parecia admirado de eu estar manifestando capacidade de ver e analisar tudo aquilo. Indicou-me o portão de uma imensa baia, e entendi que eu devia entrar.
Estava convencido, a essa altura, de que aqueles cavalos conseguiam domesticar espécies irracionais como os yahoos – talvez outras. E começava a suspeitar de que, de todos os reinos que havia visitado em minhas viagens, era aquele que iria me surpreender mais. Esse pressentimento iria se confirmar...
Dentro da baia, que era decorada com objetos, como se fosse uma sala de visitas, havia uma belíssima égua e dois potrinhos, de idades diferentes, sobre uma esteira de palha. A égua ergueu-se, encarou-me com desprezo e dirigiu-se indignada ao cavalo, que eu já considerava meu amigo. Mostrava-se bastante contrariada com minha presença ali, como se eu fosse... um ser inferior. Ela e o cavalo afastaram-se um pouco dos potros, enquanto discutiam. Vi então que ela estendia o pescoço, pela janela da baia, para os bichos peludos que executavam as tarefas, lá fora, e depois para mim, pronunciando o mesmo som: yahoo.
Não tive mais dúvidas do que estava acontecendo. Muito constrangido, encaminhei-me para o casal, fiz uma reverência, inclinando minha cabeça respeitosamente, e disse:
– É um prazer estar em sua casa, senhor e senhora! Lemuel Gulliver, para servi-los. Gulliver, navegante, cirurgião, capitão de navio deposto...
Até então, limitara-me a acompanhar o cavalo meu amigo, em silêncio. Quando me curvei diante da dona da casa e falei, ela empinou-se, apavorada. Batendo as patas vigorosamente no chão, desviou-se num galope e, a seguir, tangeu seus potrinhos, que também estavam muito espantados, para fora da baia, como se eu fosse a encarnação do demônio, bem ali na sua frente.
O cavalo meu amigo ficou paralisado. Por um instante, nos encaramos. Ele se aproximou de mim, muito cauteloso, farejou-me e fez uma careta. – Yahoo! – exclamou.
– Por favor, meu caro, não me confunda com aquelas criaturas peludas! Eu sou um... humano! Sabe o que é isso?
O cavalo relinchou. Depois, balançou a cabeça e me conduziu para uma outra baia, numa das pontas do longo edifício. Pelo menos, não me colocou na enorme jaula em que eram guardados os yahoos domesticados.
Depois desses primeiros incidentes, e à medida que fui aprendendo o idioma dos houyhnhnms, muita coisa se esclareceu.
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