Auto da Barca do Inferno

 

Fonte: VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. [Lisboa]: [s.n.], [1517] data certa da primeira encenação.

 

Proveniência: Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, da Universidade de São Paulo: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

 

Texto encenado pela primeira vez em 1517.

 

Ilustração de capa: INFERNO. [entre 1505 e 1530]. 1 óleo sobre madeira de carvalho, 119 X 217,5 cm. Acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal.

 

Editoração eletrônica: Brasil ePub <www.brasilepub.com.br>. Este arquivo pode ser livremente distribuído, desde que citada a fonte da editoração eletrônica.

 

Gil Vicente nasceu provavelmente em Guimarães, Portugal, em 1465, e faleceu, provavelmente, em 1536.

 

Esta obra encontra-se, no Brasil, em domínio público, conforme art. 41 da Lei federal n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

Sumário

 

Auto da Barca do Inferno

 

Auto da Barca do Inferno

 

 Auto de moralidade composto por Gil Vicente, por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

 

Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um Anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.

 

O primeiro intrelocutor é um fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e üa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o fidalgo venha.

 

DIABO: À barca, à barca, houlá!

que temos gentil maré!

- Ora venha o carro a ré!

COMPANHEIRO: Feito, feito!

Bem está!

Vai tu muitieramá,

e atesa aquele palanco

e despeja aquele banco,

pera a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u!

Asinha, que se quer ir!

Oh, que tempo de partir,

louvores a Berzebu!

- Ora, sus! que fazes tu?

Despeja todo esse leito!

COMPANHEIRO: Em boa hora! Feito, feito!

DIABO: Abaixa aramá esse cu!

Faze aquela poja lesta

e alija aquela driça.

COMPANHEIRO: Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!

DIABO: Oh, que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa.

Verga alta! Âncora a pique!

- Ó poderoso dom Anrique,

cá vindes vós?... Que cousa é esta?...

 

Vem o fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

 

FIDALGO: Esta barca onde vai ora,

que assi está apercebida?

DIABO: Vai pera a ilha perdida,

e há-de partir logo ess'ora.

FIDALGO: Pera lá vai a senhora?

DIABO: Senhor, a vosso serviço.

FIDALGO: Parece-me isso cortiço...

DIABO: Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO: Porém, a que terra passais?

DIABO: Pera o inferno, senhor.

FIDALGO: Terra é bem sem-sabor.

DIABO: Quê?... E também cá zombais?

FIDALGO: E passageiros achais

pera tal habitação?

DIABO: Vejo-vos eu em feição

pera ir ao nosso cais...

FIDALGO: Parece-te a ti assi!...

DIABO: Em que esperas ter guarida?

FIDALGO: Que leixo na outra vida

quem reze sempre por mi.

DIABO: Quem reze sempre por ti?!..

Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

E tu viveste a teu prazer,

cuidando cá guarecer

por que rezam lá por ti?!...