DIABO: Pois estando tu expirando,
se estava ela requebrando
com outro de menos preço.
FIDALGO: Dá-me licença, te peço,
que vá ver minha mulher.
DIABO: E ela, por não te ver,
despenhar-se-á dum cabeço!
Quanto ela hoje rezou,
antre seus gritos e gritas,
foi dar graças infinitas
a quem a desassombrou.
FIDALGO: Cant'a ela, bem chorou!
DIABO: Nom há i choro de alegria?..
FIDALGO: E as lástimas que dezia?
DIABO: Sua mãe lhas ensinou...
Entrai, meu senhor, entrai:
Ei la prancha! Ponde o pé...
FIDALGO: Entremos, pois que assi é.
DIABO: Ora, senhor, descansai,
passeai e suspirai.
Em tanto virá mais gente.
FIDALGO: Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!
Diz o Diabo ao Moço da cadeira:
DIABO: Nom entras cá! Vai-te d'i!
A cadeira é cá sobeja;
cousa que esteve na igreja
nom se há-de embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi,
marchetada de dolores,
com tais modos de lavores,
que estará fora de si...
À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar ela! Chegar ela!
Muitos e de boamente!
Oh! que barca tão valente!
Vem um onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:
ONZENEIRO: Pera onde caminhais?
DIABO: Oh! que má-hora venhais,
ONZENEIRO: meu parente!
Como tardastes vós tanto?
ONZENEIRO: Mais quisera eu lá tardar...
Na safra do apanhar
me deu Saturno quebranto.
DIABO: Ora mui muito m'espanto
nom vos livrar o dinheiro!...
ONZENEIRO: Solamente para o barqueiro
nom me leixaram nem tanto...
DIABO: Ora entrai, entrai aqui!
ONZENEIRO: Não hei eu i d'embarcar!
DIABO: Oh! que gentil recear,
e que cousas pera mi!...
ONZENEIRO: Ainda agora faleci,
leixa-me buscar batel!
DIABO: Pesar de Jam Pimentel!
Porque não irás aqui?...
ONZENEIRO: E pera onde é a viagem?
DIABO: Pera onde tu hás-de ir.
ONZENEIRO: Havemos logo de partir?
DIABO: Não cures de mais linguagem.
ONZENEIRO: Mas pera onde é a passagem?
DIABO: Pera a infernal comarca.
ONZENEIRO: Dix! Nom vou eu tal barca.
Estoutra tem avantagem.
Vai-se à barca do Anjo e diz:
Hou da barca! Houlá! Hou!
Haveis logo de partir?
ANJO: E onde queres tu ir?
ONZENEIRO: Eu pera o Paraíso vou.
ANJO: Pois cant'eu mui fora estou
de te levar para lá.
Essoutra te levará;
vai pera quem te enganou!
ONZENEIRO: Porquê?
ANJO: Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
ONZENEIRO: Juro a Deus que vai vazio!
ANJO: Não já no teu coração.
ONZENEIRO: Lá me fica, de rondão,
minha fazenda e alhea.
ANJO: Ó onzena, como és fea
e filha de maldição!
Torna o onzeneiro à barca do Inferno e diz:
ONZENEIRO: Houlá! Hou! Demo barqueiro!
Sabês vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazer o meu dinheiro.
que aqueloutro marinheiro,
porque me vê vir sem nada,
dá-me tanta borregada
como arrais lá do Barreiro.
DIABO: Entra, entra, e remarás!
Nom percamos mais maré!
ONZENEIRO: Todavia...
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