DIABO: Ó Inferno! Entra cá!
PARVO: Ò Inferno?... Eramá...
Hiu! Hiu! Barca do cornudo.
Pêro Vinagre, beiçudo,
rachador d'Alverca, huhá!
sapateiro da Candosa!
Antrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
e há-de parir um sapo
chantado no guardanapo!
Neto de cagarrinhosa!
Furta cebolas! Hiu! Hiu!
Excomungado nas erguejas!
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
A mulher que te fugiu
per'a Ilha da Madeira!
Cornudo atá mangueira,
toma o pão que te caiu!
Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!
Dê-dê! Pica nàquela!
Hump! Hump! Caga na vela!
Hio, cabeça de grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho da Pampulha!
Mija n'agulha, mija n'agulha!
Chega o parvo ao batel do anjo e dlz:
PARVO: Hou da barca!
ANJO: Que me queres?
PARVO: Queres-me passar além?
ANJO: Quem és tu?
PARVO: Samica alguém.
ANJO: Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres
per malícia nom erraste.
Tua simpreza t'abaste
pera gozar dos prazeres.
Espera entanto per i:
veremos se vem alguém,
merecedor de tal bem,
que deva de entrar aqui.
Vem um sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal, e diz:
SAPATEIRO: Hou da barca!
DIABO: Quem vem i?
Santo sapateiro honrado,
como vens tão carregado?...
SAPATEIRO: Mandaram-me vir assi...
E pera onde é a viagem?
DIABO: Pera o lago dos danados.
SAPATEIRO: Os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
DIABO: Nom cures de mais linguagem!
Esta é a tua barca, esta!
SAPATEIRO: Renegaria eu da festa
e da puta da barcagem!
Como poderá isso ser,
confessado e comungado?!...
DIABO: Tu morreste excomungado:
Nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver,
calaste dous mil enganos...
Tu roubaste bem trint'anos
o povo com teu mester.
Embarca, eramá pera ti,
que há já muito que t'espero!
SAPATEIRO: Pois digo-te que nom quero!
DIABO: Que te pês, hás-de ir, si, si!
SAPATEIRO: Quantas missas eu ouvi,
nom me hão elas de prestar?
DIABO: Ouvir missa, então roubar,
é caminho per'aqui.
SAPATEIRO: E as ofertas que darão?
E as horas dos finados?
DIABO: E os dinheiros mal levados,
que foi da satisfação?
SAPATEIRO: Ah! Nom praza ò cordovão,
nem à puta da badana,
se é esta boa traquitana
em que se vê Jan Antão!
Ora juro a Deus que é graça!
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da santa caravela,
poderês levar-me nela?
ANJO: A cárrega t'embaraça.
SAPATEIRO: Nom há mercê que me Deus faça?
Isto uxiquer irá.
ANJO: Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.
Oh! almas embaraçadas!
SAPATEIRO: Ora eu me maravilho
haverdes por grão peguilho
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir i chantadas
num cantinho desse leito!
ANJO: Se tu viveras dereito,
Elas foram cá escusadas.
SAPATEIRO: Assi que determinais
que vá cozer ò Inferno?
ANJO: Escrito estás no caderno
das ementas infernais.
Torna-se à barca dos danados, e diz:
SAPATEIRO: Hou barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!
Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel e üa espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:
FRADE: Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!
DIABO: Que é isso, padre?! Que vai lá?
FRADE: Deo gratias! Som cortesão.
DIABO: Sabês também o tordião?
FRADE: Porque não? Como ora sei!
DIABO: Pois entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.
Essa dama é ela vossa?
FRADE: Por minha la tenho eu,
e sempre a tive de meu,
DIABO: Fezestes bem, que é fermosa!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?
FRADE: E eles fazem outro tanto!
DIABO: Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!
FRADE: Para onde levais gente?
DIABO: Pera aquele fogo ardente
que nom temestes vivendo.
FRADE: Juro a Deus que nom t'entendo!
E este hábito no me val?
DIABO: Gentil padre mundanal,
a Berzebu vos encomendo!
FRADE: Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!
DIABO: Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.
FRADE: Nom ficou isso n'avença.
DIABO: Pois dada está já a sentença!
FRADE: Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
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