DIABO: Entrai vós, e remarês.
BRÍZIDA: Nom quero eu entrar lá.
DIABO: Que sabroso arrecear!
BRÍZIDA: No é essa barca que eu cato.
DIABO: E trazês vós muito fato?
BRÍZIDA: O que me convém levar.
Día. Que é o que havês d'embarcar?
BRÍZIDA: Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nom podem mais levar.
Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.
A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!
DIABO: Ora ponde aqui o pé...
BRÍZIDA: Hui! E eu vou pera o Paraíso!
DIABO: E quem te dixe a ti isso?
BRÍZIDA: Lá hei-de ir desta maré.
Eu sô üa mártela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.
Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:
Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRÍZIDA: Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
ANJO: de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
Santa Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhüa se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!
ANJO: Ora vai lá embarcar,
não estês importunando.
BRÍZIDA: Pois estou-vos eu contando
o porque me haveis de levar.
ANJO: Não cures de importunar,
que não podes vir aqui.
BRÍZIDA: E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!...
Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:
BRÍZIDA: Hou barqueiros da má-hora,
que é da prancha, que eis me vou?
E já há muito que aqui estou,
e pareço mal cá de fora.
DIABO: Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...
Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:
JUDEU: Que vai cá? Hou marinheiro!
DIABO: Oh! que má-hora vieste!...
JUDEU: Cuj'é esta barca que preste?
DIABO: Esta barca é do barqueiro.
JUDEU: Passai-me por meu dinheiro.
DIABO: E o bode há cá de vir?
JUDEU: Pois também o bode há-de vir.
DIABO: Que escusado passageiro!
JUDEU: Sem bode, como irei lá?
DIABO: Nem eu nom passo cabrões.
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