Bartleby, o escriturário (Novelas Imortais)

Coleção Novelas Imortais

organização e apresentação

Fernando Sabino

BARTLEBY
O ESCRITURÁRIO

herman melville

tradução

Luís de Lima

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Sumário

Apresentação

Bartleby, o escriturário

Créditos

Apresentação

Verifico com surpresa que a Enciclopédia Britânica, por mim consultada, dedica ao escritor Herman Melville apenas um pequeno verbete, não mais que um quarto de página, informando:“Seus escritos são numerosos e de mérito variado; seus versos, patrióticos e outros, estão esquecidos e seus trabalhos de ficção ou de viagem são de realização irregular.”

Por que semelhante desconsideração? Descubro logo que não se trata de menosprezo: a edição que possuo é de 1947. E foi só a partir de então que Melville passou a ser gradativamente redescoberto, e reconhecida a sua importância na literatura norte-americana.

Tanto assim que a Delta Larousse, já na edição de 1973, numa menção embora menor ainda, afirma que “Melville é hoje considerado um dos grandes romancistas norte-americanos” e que “todas as suas obras têm alta significação moral e crítica da vida”. E a Delta Universal, em 1980:“Um dos mais importantes escritores norte-americanos; escreveu Moby Dick, um dos grandes romances da literatura mundial. Muitas de outras obras suas também são criações literárias de alto nível – em que se misturam fatos da vida real, ficção e um sutil simbolismo.” Como se vê, o tom já é outro.

E ainda: “A popularidade de Melville começou a declinar, curiosamente, com a publicação de sua obra-prima Moby Dick. O romance foi ignorado ou mal compreendido pela crítica e pelos leitores. A seguir publicou o romance Pierre (1853), pessimista e trágico, que fez com que sua popularidade decaísse mais ainda.”

Por aí se verifica que a reputação de um escritor, ao longo do tempo, sofre variações ao sabor das ondas de crédito e descrédito que o público vai gratuitamente provocando, e oscila como um navio daqueles em que Melville embarcou para iniciar as suas viagens pelos mares deste mundo.

E como esta apresentação não pretende ser muito mais do que simplesmente informativa, passemos aos dados biográficos.

Herman Melville nasceu no dia 1º de agosto de 1819, em Nova York. Aos 18 anos, embarcou como camareiro num navio que o levou pela primeira vez à Inglaterra.Aos 22 anos, engajou-se na tripulação de um baleeiro para uma viagem de quatro anos pelos mares do Pacífico.Ao fim de um ano e meio desertou, em protesto contra o tratamento desumano a que o capitão submetia os seus subordinados. (Aí estava o protótipo do capitão Ahab, imortal personagem de sua obra-prima.) Nas ilhas Marquesas foi capturado pelos canibais, que não se serviram dele para o jantar, mas para trabalhos forçados durante quatro anos de cativeiro. Esta terrível experiência forneceu o tema de seu primeiro livro, em 1856: Typee, a peep at Polynesian life or four months residence in a valle of the Marquesas (Typee, uma olhada na vida polinésia ou quatro meses de permanência num vale das Marquesas). Conseguiu escapar, e continuou se servindo de sua experiência como inspiração para os livros que se seguiram: Ommoo, a narrative of adventures in the south seas (Ommoo, uma narrativa de aventuras nos mares do Sul), de 1847, e White jacket, or the world in a Man-of-war (Túnica branca, ou o mundo num homemde-guerra) de 1851, e finalmente Moby Dick, or the white whale (Moby Dick, ou a baleia branca), de 1851, no qual revelou toda a força do seu gênio criador. É possível que ele próprio não tivesse consciência do profundo sentido simbólico da história nascida de sua poderosa intuição: a sinistra baleia representando as forças cósmicas que se desencadeiam sobre o homem e este se dispondo a enfrentá-las, apesar de todas as suas limitações.

Mesmo com a importância do romance, e apesar dos esforços para ajudá-lo de Nathaniel Hawthorne, outro grande escritor seu contemporâneo, Melville não conseguia estabilidade econômica para prosseguir a sua obra. Foi forçado então a escrever romances seriados, novelas e contos para as revistas da época. Daí a queda da qualidade das obras que se seguiram: o romance Israle Potter e as histórias reunidas no livro Piazza Tales.A partir de mais um livro sem maior importância, publicado em 1856, deixou de escrever por muito tempo. Pouco antes de morrer, em NovaYork, a 28 de setembro de 1891, terminou o último romance, Billy Budd, só publicado em 1924 e considerado o seu melhor trabalho, depois de Moby Dick.

A novela aqui apresentada tem em sua obra um lugar de destaque a partir da admirável adequação da linguagem ao espírito do velho narrador da história de Bartleby. A patética figura do escriturário, com a sua abulia e crescente alienação, que faz lembrar um personagem de Kafka, vem a ser uma verdadeira antevisão do homem robotizado do nosso tempo, o pobre-diabo esmagado pelas condições desumanas da vida em sociedade, cujo destino final é mesmo o hospício.

A circunstância de ser mais uma vez, nesta coleção, Luís de Lima o tradutor tem outro mérito, além da garantia de um trabalho como sempre impecável: o de relembrar um extraordinário feito seu, como homem de teatro. Em 1953, por sugestão deVinicius de Moraes, ele concebeu, dirigiu e interpretou em São Paulo (e no Rio de Janeiro, em 1956) o memorável drama de mímica baseado nesta novela, O escriturário – trabalho pioneiro na América Latina, onde jamais se fizera antes espetáculo dramático sem recorrer ao uso da palavra.

O que vem comprovar mais uma vez que a criação de um grande escritor, como a de Herman Melville, vai muito além das palavras em si, até o território silencioso onde pulsa o profundo mistério da vida.

FERNANDO SABINO

(1986)

BARTLEBY
O ESCRITURÁRIO

Sou um homem de certa idade. A natureza das minhas ocupações, nestes últimos trinta anos, me levou a entrar permanentemente em contato com uma espécie de homens interessantes e um tanto singulares, da qual, que eu saiba, nada até agora se tem escrito: refiro-me aos copistas, escriturários ou escreventes a serviço de homens de leis. Conheci muitos, quer profissional quer particularmente, e poderia, se quisesse, contar sobre eles inúmeras histórias que fariam sorrir afáveis cavalheiros e levariam às lágrimas as almas sentimentais. Mas renuncio às biografias de todos os demais escriturários para relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos que jamais vi e de quantos tive notícia. Se de outros escreventes eu poderia traçar a biografia completa, de Bartleby nada nesse estilo eu poderia fazer. Acredito não existirem elementos para uma biografia completa e satisfatória deste homem. É uma perda irreparável para a literatura. Bartleby era uma dessas criaturas de quem nada se pode averiguar senão nas fontes de origem, e, no caso dele, estas eram muito escassas. O que meus olhos atônitos viram de Bartleby é tudo quanto sei dele – exceto uma vaga informação que será relatada mais adiante.

Antes de apresentar o copista, tal como me apareceu pela primeira vez, será bom que faça umas referências a mim próprio, meus empregados, minhas atividades, meu escritório e tudo o que me cerca, porque uma tal descrição é indispensável a uma adequada compreensão do principal personagem que vai ser aqui apresentado.

Em primeiro lugar: sou um homem que, desde a mocidade, mantém a profunda convicção de que a melhor maneira de se viver é de se encarar tudo com tranquilidade. Daí que, embora eu exerça uma profissão proverbialmente enérgica e tão agitada que, por vezes, chega às raias da turbulência, nunca permiti que nada pudesse perturbar a minha paz.

Sou um desses advogados sem ambições que nunca interpelam um júri ou buscam o aplauso público, mas que, na serena tranquilidade de um correto retiro, negociam corretamente com o capital, as hipotecas e títulos de propriedade de homens ricos. Todos os que me conhecem me consideram um homem eminentemente correto.

O falecido John Jacob Astor, pessoa pouco dada a entusiasmos poéticos, não hesitava em declarar que o meu primeiro grande mérito era a prudência; o segundo, o método. Não digo isto por vaidade, mas registro simplesmente o fato de que nunca me deixou desempregado em minha profissão o falecido John Jacob Astor – um nome que, admito, adoro repetir, porque nele há um som rotundo e fluente, tilintante como ouro em barra. E, francamente, devo acrescentar que eu não era insensível à boa opinião do saudoso John Jacob Astor.

Pouco antes da época em que esta pequena história começa, minhas ocupações haviam aumentado consideravelmente. O antigo e rendoso cargo – ora extinto no Estado de Nova York – de conselheiro do tribunal da Chancelaria, tinha me sido conferido. Este cargo, sem ser muito árduo, era no entanto perfeitamente compensador.