Se tiver de sujar-se, suje-se gordo!

— No seu entender, o Brasil vai bem ou perde-se?

— O país real, esse é bom; o povo revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.

Tal comentário traz à baila a questão da dívida externa, que está deixando o país de joelhos. Mas o meu interlocutor, que parece ter resposta engatilhada para tudo, objecta:

— Que é pagar uma dívida? É suprimir, sem necessidade urgente, a prova do crédito que um homem merece.

"As botas apertadas são

Aumentá-la é fazer crescer a prova.

uma das maiores venturas

— O problema é que a dívida legou-nos uma herança da natureza", diz Machado. trágica...

Entretanto, o que está a

acontecer no resto do

— Ora, heranças... Há dessas lutas terríveis na alma de mundo? Consulta a Tábua

um homem. Não, ninguém sabe o que se passa no interior Cronológica.

de um sobrinho, tendo de chorar a morte de um tio e receber-lhe a herança. Oh, contraste maldito!

Aparentemente tudo se recomporia, desistindo o sobrinho do dinheiro herdado; ah! Mas então seria chorar duas coisas: o tio e o dinheiro.

Meu interlocutor disfarça leve bocejo e comenta, com um vestígio de sorriso irônico, que dormir é um modo interino de morrer. De repente, ele está mais loquaz. Do sono sinônimo de morte pula para o tempo, sinônimo de tédio, e sugere o dilema: matamos o tempo, o tempo nos 5 of 28

06-04-2005 9:37

Machado de Assis

http://www.vidaslusofonas.pt/machado_de_assis.htm enterra.

Ficamos a olhar perto, no cais, um grupo de negros a descarregar um caminhão. Sacas pesadas, talvez de sessenta quilos. Café? Comento que aquele trabalho é deveras pesado.

— O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas — suspira o velho.

Com o lenço, limpa as lentes. Tem ar alheado. A observação sobre o trabalho o faz pensar em tema assemelhado.

— A honestidade — balbucia. — Ah, a honestidade... Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco.

—É tudo uma questão de consciência — eu arrisco.— E

a boa consciência, muitas vezes, está com os vencidos da vida.

— Nada mais exato, mancebo. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

Pausa. A cabeça do ancião de pincenê pende para o peito.

Mas os olhos me parecem vivos, deles se desprende uma luz quase crua.