— eu insinuo, desdobrando o jornal.
— Não nego as belezas do jejum, mas o céu fica tão longe, que um homem fraco pode cair na estrada, se não tiver alguma coisa no estômago.
O ancião curva-se para limpar a boca. Deve ter uns oitenta, penso.
— O jornal diz aqui que o povo está enviando comida para os flagelados.
— A comida não me preocupa. Virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar.
— De qualquer modo o Governo simula ação, pressionado pela opinião pública.
— Suporta-se com paciência a cólica do próximo.
— Mas os saques? O que o senhor pensa dos saques aos supermercados?
— Não é a ocasião que faz o ladrão; a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito...
— Entendo. O senhor vota em que partido?
— Nenhum. Não me irrito, portanto, se me pagam mal um benefício. Antes cair das nuvens que de um terceiro andar.
— Já sei: o senhor, como muitos brasileiros, perdeu a fé.
— Não é bem assim. Tenho o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia.
Onde eu já teria ouvido ou lido essas palavras? Folheio o jornal.
— Vejo que o senhor não dispensa as folhas — observa o velho. — O maior pecado, depois do pecado, é a 4 of 28
06-04-2005 9:37
Machado de Assis
http://www.vidaslusofonas.pt/machado_de_assis.htm publicação do pecado.
— Se o senhor fosse presidente, o que faria?— pergunto.
— Eu, presidente? Sei que a presidência, aceita-se... Mas falta-me aquela força precisa para trair os amigos. Eu gostaria era de ser um rei sem súditos... Se eu perdesse um pé, não teria o desprazer de ver coxear os meus vassalos. Mas quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito superior e anterior a todas as leis.
— E a corrupção, pensando bem, é uma lei humana...
— Mais ou menos, meu jovem. O conselho de Iago é que se meta dinheiro no bolso. Corrupção escondida vale tanto como a pública; a diferença é que não fede.
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