A lagosta foi de imediato rodeada de um conjunto de agradáveis reminiscências e a curiosidade acerca das «encantadoras jovens» distraiu-no do cómico incidente.
«Calculo que vai rir-se e troçar do que aconteceu mais tarde com o Laurie, mas eu não os ouvirei, o que é um consolo», pensou Amy, quando o jovem fez uma vénia e saiu do autocarro.
Não mencionou este encontro quando chegou a casa (apesar de descobrir que, graças ao incidente, o vestido novo estava muito danificado com os rios de molho que lhe escorriam pela saia) e foi tratar dos preparativos, que lhe pareceram mais penosos do que antes. E às onze horas tudo estava mais uma vez pronto. Sabendo que os vizinhos estavam interessados nas suas movimentações, quis apagar a memória do fracasso do dia anterior com um grandioso sucesso nesse dia; por isso mandou vir o charabã e seguiu com grande pompa para receber e escoltar as suas convidadas para o banquete.
— Já oiço o barulho da carruagem, elas vêm aí! Vou recebê-las no alpendre; é um gesto simpático e quero que a pobre criança se divirta, depois de todo o trabalho que teve — disse a Sr.ª March, fazendo das palavras atos. Porém, depois de um olhar, retirou-se com uma expressão indescritível, pois, parecendo bastante perdidas na grande carruagem, vinham Amy e outra jovem.
— Corre, Beth, e ajuda a Hannah e tirar metade das coisas da mesa. Seria ridículo apresentar um almoço para doze a uma única rapariga — exclamou Jo, correndo para o interior da casa, demasiado esfalfada até para se rir a bom rir.
Amy entrou, muito calma e deliciosamente cordial com a única convidada que cumprira a promessa. O resto da família, que tinha uma veia de ator, desempenhou os seus papéis igualmente bem e a Menina Eliott achou-os muito divertidos, pois foi impossível controlar a alegria que se apoderou deles. Depois de comido o almoço remodelado, visitado o estúdio e o jardim, e de uma acesa discussão sobre arte, Amy mandou chamar uma caleche (adeus ao elegante charabã!) e passeou tranquilamente com a amiga pelas redondezas até ao pôr do sol, quando «a festa terminou».
Voltou para casa a pé, com um ar muito cansado, mas com a compostura de sempre, e reparou que todos os vestígios da lamentável fête tinham desaparecido, com exceção de uma suspeita elevação nos cantos da boca de Jo.
— Tiveste uma linda tarde para o passeio, minha querida — disse a mãe, num tom tão respeitoso como se tivessem vindo as doze.
— A Menina Eliott é uma rapariga muito simpática e parece ter-se divertido muito — observou Beth, com um entusiasmo invulgar.
— Podes dar-me um pouco do teu bolo? Preciso mesmo de algum, porque tenho muitas visitas e não consigo fazê-los tão deliciosos como este — pediu Meg muito séria.
— Leva-o todo; eu sou a única que gosta de coisas doces cá em casa, e o bolo vai estragar-se antes de conseguir comê-lo até ao fim — respondeu Amy, pensando com um suspiro no dinheiro que gastara nele para acabar assim!
— É uma pena o Laurie não estar cá para nos ajudar — começou Jo, quando se sentaram a comer gelado e salada pela quarta vez em dois dias seguidos.
Um olhar de advertência da mãe travou mais comentários e a família continuou a comer num heroico silêncio até o Sr. March comentar num tom calmo:
— A salada era um dos pratos preferidos dos antigos e Evelyn... — Nesta altura, uma explosão de gargalhadas interrompeu a «história dos capacetes sem viseira», para grande surpresa do erudito cavalheiro.
— Ponham tudo num cesto e mandem para os Hummels... os alemães agradecem um prato de comida. Estou farta de ver isto, e não há motivo para morrerem todos com uma indigestão só porque eu fui uma tonta — exclamou Amy, limpando os olhos.
— Eu pensei que ia morrer, quando vos vi às duas naquela geringonça como grãos numa grande casca de noz e a mãe à espera com toda a cerimónia para receber a comitiva — suspirou Jo, a rir a bandeiras despregadas.
— Tenho muita pena de que estejas desapontada, minha querida, mas todos fizemos o que estava ao nosso alcance para te satisfazer — disse a Sr.ª March num tom repleto de maternal pena.
— Eu estou satisfeita, fiz o que planeei e não é culpa minha se as coisas não correram bem. Consolo-me com isso — disse Amy, com um leve tremor na voz. — Agradeço-vos muito a todos por me terem ajudado e ainda mais se não falarem no assunto pelo menos durante um mês.
Ninguém comentou aquele episódio durante muitos meses, mas a palavra «fête» provocava sempre um sorriso generalizado, e o presente de Laurie para Amy foi uma minúscula lagosta de coral para a sua pulseira de pendentes.
CAPÍTULO QUATRO
LIÇÕES LITERÁRIAS
De repente, o destino sorriu a Jo e pôs no seu caminho uma moeda da sorte. Não propriamente uma moeda de ouro, mas duvido que meio milhão lhe tivesse causado uma felicidade mais verdadeira do que a singela quantia que lhe veio parar às mãos.
A cada duas ou três semanas, a jovem fechava-se no seu quarto, vestia a roupa de escrever e «ficava em transe», como ela própria dizia, escrevendo o seu romance com garra e alma, pois enquanto não estivesse terminado não teria paz. A sua «roupa de escrever» consistia numa bata de lã preta onde podia limpar o aparo quantas vezes queria sem que se notasse e uma touca do mesmo material, enfeitada com um alegre laço vermelho, onde escondia o cabelo quando estava preparada para escrever. Esta touca era um sinal para os inquisidores olhos dos membros da família, que, durante esses períodos, se mantinham à distância, limitando-se a espreitar de vez em quando para perguntar, com interesse, «O génio queima, Jo?». Nem sempre se aventuravam a fazer esta pergunta, observando a touca e agindo em conformidade. Se esta expressiva peça de vestuário estivesse caída sobre a testa, era sinal de que estava em marcha um trabalho concentrado; em momentos de entusiasmo, ficava num ângulo torto, e quando a autora era acometida pelo desespero, era arrancada da cabeça e atirada ao chão. Nesses momentos, o intruso optava por se retirar em silêncio, e só quando a touca era vista de novo na dotada testa é que as pessoas se atreviam a dirigir-se a ela.
Não se pense que Jo se considerava um génio. O que acontecia era que, quando a inspiração vinha, a jovem dedicava-se a ela com o mais completo abandono e tinha uma vida feliz, esquecidas todas as necessidades, preocupações ou mau tempo, e mergulhava alegremente num mundo imaginário, cheio de amigos que eram quase tão queridos e reais para si como os de carne e osso. O sono fugia-lhe dos olhos, as refeições ficavam intocadas e o dia e a noite eram demasiado curtos para desfrutar da felicidade que a abençoava apenas nessas alturas e as tornavam dignas de ser vividas, ainda que não tirasse dessas horas outro proveito. Esta divina inspiração costumava durar uma ou duas semanas e depois Jo emergia do seu «transe» esfomeada, cheia de sono, zangada ou desanimada.
Estava a recuperar de um desses ataques quando foi convencida a acompanhar a Menina Crocker a uma palestra e em troca da boa ação foi recompensada com uma nova ideia. Era um Curso Popular — uma palestra sobre as Pirâmides — e Jo questionou-se sobre a pertinência da escolha do tema para aquele público, mas concluiu que um grande mal social seria remediado ou alguma grande carência resolvida ao serem desvendadas as glórias dos faraós a uma audiência que estava preocupada com o preço do carvão e da farinha e cujas vidas eram passadas a tentar resolver quebra-cabeças mais difíceis do que o da Esfinge.
Como chegaram cedo e a Menina Crocker se pôs a arranjar o calcanhar da meia, Jo divertiu-se a examinar os rostos das pessoas sentadas no mesmo banco que elas. À sua esquerda, duas matronas com enormes testas e chapéus a condizer discutiam os Direitos das Mulheres enquanto faziam espiguilha. A seguir sentava-se um par de humildes namorados que davam as mãos com recato, uma sombria solteirona que comia pastilhas de hortelã de um saco de papel e um velho cavalheiro que fazia a sua sesta preliminar por trás de um lenço amarelo. À direita, o seu único vizinho era um rapaz com aspeto estudioso, concentrado na leitura de um jornal.
Como era um periódico ilustrado, Jo examinou a obra de arte que estava mais perto, perguntando distraidamente a si mesma que lamentável encadeamento de circunstâncias necessitava da melodramática ilustração de um índio em traje de guerra a cair por um precipício com um lobo preso na garganta, enquanto dois jovens cavalheiros enfurecidos, com pés impossivelmente pequenos e olhos estranhamente grandes, se apunhalavam ali perto e uma mulher desgrenhada fugia ao fundo com a boca muito aberta. O rapaz fez uma pausa para virar uma página e, ao ver que ela estava a olhar, ofereceu-lhe com amabilidade metade do jornal, dizendo sem cerimónia:
— Quer lê-la? É uma história excelente.
Jo aceitou com um sorriso, pois nunca lhe passara a preferência pela convivência com rapazes, e depressa se viu envolvida no habitual labirinto de amor, mistério e crime, já que a história pertencia àquela classe de literatura de cordel em que as paixões estão ao rubro e, quando a imaginação do autor falha, uma grande catástrofe tira de cena metade dos personagens, deixando a outra metade exultante com o seu desaparecimento.
— Excelente, não é? — perguntou o rapaz, quando Jo começou a ler o último parágrafo da sua folha.
— Acho que, se tentássemos, nós os dois poderíamos fazer um trabalho tão bom como este — respondeu Jo, divertida com a admiração que o rapaz sentia por aquele lixo.
— Eu considerar-me-ia muito afortunado se conseguisse. Dizem que ela ganha um bom dinheiro com estas histórias — e apontou para o nome da Sr.ª S. L. A.
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