Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

 

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

 

1913

 

 

[Dobre]

 

Peguei no meu coração

E pu-lo na minha mão,

 

Olhei-o como quem olha

Grãos de areia ou uma folha.

 

Olhei-o pávido e absorto

Como quem sabe estar morto;

 

Com a alma só comovida

Do sonho e pouco da vida.

 

1913

 

 

[Além-Deus]

 

I – Abismo

 

Olho o Tejo, e de tal arte

Que me esquece olhar olhando,

E súbito isto me bate

De encontro ao devaneando —

O que é ser-rio, e correr?

O que é está-lo eu a ver?

 

Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco —

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo — eu e o mundo em redor —

Fica mais que exterior.

 

Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, ideia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus...

 

E súbito encontro Deus.

 

 

II – Passou

 

Passou, fora de Quando,

De Porquê, e de Passando...,

 

Turbilhão de Ignorado,

Sem ter turbilhonado...,

 

Vasto por fora do Vasto

Sem ser, que a si se assombra...,

 

O universo é o seu rasto...

Deus é a sua sombra.

 

 

III – A voz de Deus

 

Brilha uma voz na noite...

De dentro de Fora ouvi-a...

Oh Universo, eu sou-te...

Oh, o horror da alegria

Deste pavor, do archote

Se apagar, que me guia!

 

Cinzas de ideia e de nome

Em mim, e a voz: Oh mundo,

Sermente em ti eu sou-me...

Mero eco de mim, me inundo

De ondas de negro lume

Em que para Deus me afundo.

 

 

IV – A queda

 

Da minha ideia do mundo

Caí...

Vácuo além de profundo,

Sem ter Eu nem Ali...

 

Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver

 

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...

Clarão de Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...

 

 

V – Braço sem corpo brandindo um gládio

 

Entre a árvore e o vê-la

Onde está o sonho?

Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho

Por não saber se a curva da ponte

É a curva do horizonte...

 

Entre o que vive e a vida

Para que lado corre o rio?

Árvore de folhas vestida —

Entre isso e Árvore há fio?

Pombas voando — o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?

 

Deus é um grande Intervalo,

Mas entre quê e quê?...

Entre o que digo e o que calo

Existo? Quem é que me vê?

Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?

 

1913 (?)

 

 

[Chuva oblíqua]

 

I

 

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

 

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

 

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

 

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

 

 

II

 

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

 

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

 

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

 

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

 

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

 

E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa...

 

 

III

 

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...

Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

 

Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena

Ser o perfil do rei Queóps...

De repente paro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

 

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro

E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

 

Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

 

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...

 

 

IV

 

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...

As paredes estão na Andaluzia...

Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

 

De repente todo o espaço para....

Para, escorrega, desembrulha-se...,

E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,

Abrem mãos brancas janelas secretas

E há ramos de violetas caindo

De haver uma noite de Primavera lá fora

Sobre o eu estar de olhos fechados...

 

 

V

 

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel...

Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...

Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,

E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal...

Ranchos de raparigas de bilha à cabeça

Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,

Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,

Gente toda misturada com as luzes das barracas com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se

Até formarem só um que é os dois...

A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,

 

E a noite que pega na feira e a levanta ao ar,

Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,

Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,

Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,

 

E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,

E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

 

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira

E, misturado, o pó das duas realidades cai

Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos

Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...

Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...

As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,

Sozinha e contente como o dia de hoje...

 

 

VI

 

O maestro sacode a batuta,

E lânguida e triste a música rompe...

 

Lembra-me a minha infância, aquele dia

Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal

 

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado

O deslizar dum cão verde, e do outro lado

Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo,

 

Prossegue a música, e eis na minha infância

De repente entre mim e o maestro, muro branco,

Vai e vem a bola, ora um cão verde,

Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

 

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância

Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,

Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal

Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...

(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

 

Atiro-a de encontro à minha infância e ela

Atravessa o teatro todo que está aos meus pés

A brincar com um jockey amarelo e um cão verde

E um cavalo azul que aparece por cima do muro

Do meu quintal... E a música atira com bolas

À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos

De batuta e rotações confusas de cães verdes

E cavalos azuis e jockeys amarelos...,

Todo o teatro é um muro branco de música

Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade

Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

 

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,

Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa

Com orquestras a tocar música,

Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei

E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

 

E a música cessa como um muro que desaba,

A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,

E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,

E curva-se sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,

Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

 

1914 (?)

 

 

[As tuas mãos terminam em segredo]

 

As tuas mãos terminam em segredo.

Os teus olhos são negros e macios

Cristo na cruz os teus seios (?) esguios

E o teu perfil princesas no degredo...

 

Entre buxos e ao pé de bancos frios

Nas entrevistas alamedas, quedo

O vento põe seu arrastado medo

Saudoso a longes velas de navios.

 

Mas quando o mar subir na praia e for

Arrasar os castelos que na areia

As crianças deixaram, meu amor,

 

Será o haver cais num mar distante...

Pobre do rei pai das princesas feias

No seu castelo à rosa do Levante!

 

1914

 

 

[Canção]

 

Elfos ou gnomos tocam?...

Roçam nos pinheirais

Sombras e bafos leves

De ritmos musicais...

 

Ondulam como em voltas

De estradas não sei onde,

Ou como alguém que entre árvores

Ora se mostra ou esconde...

 

Forma longínqua e incerta

Do que eu nunca terei...

Mal ouço e quase choro...

Porque choro não sei...

 

Tão ténue melodia

Que mal sei se ela existe

Ou se é só o crepúsculo,

Os pinhais e eu estar triste...

 

Mas cessa, como uma brisa,

Esquece a forma aos seus ais,

E agora não há mais música

Do que a dos pinheirais...

 

1914

 

 

[Serena voz imperfeita]

 

Serena voz imperfeita, eleita

Para falar aos deuses mortos —

A janela que falta ao teu palácio deita

Para o Porto todos os portos.

 

Faísca da ideia de uma voz soando

Lírios nas mãos das princesas sonhadas

Eu sou a maré de pensar-te, orlando

A Enseada todas as enseadas.

 

Brumas marinhas esquinas de sonho...

Janelas dando para Tédio os charcos

E eu fito o meu Fim que me olha, tristonho,

Do convés do Barco todos os barcos...

 

1914

 

 

[Uns versos quaisquer]

 

Vive o momento com saudade dele

Já ao vivê-lo...

Barcas vazias, sempre nos impele

Como a um solto cabelo

Um vento para longe, e não sabemos,

Ao viver, que sentimos ou queremos...

 

Demo-nos pois a consciência disto

Como de um lago

Posto em paisagens de torpor mortiço

Sob um céu ermo e vago,

Que a nossa consciência de nós seja

Uma coisa que nada já deseja...

 

Assim idênticos à hora toda

Em seu pleno labor,

Nossa vida será nossa anteboda:

Não nós, mas uma cor,

Um perfume, um meneio de arvoredo,

E a morte não virá nem tarde ou cedo...

 

Porque o que importa é que já nada importe...

Nada nos vale

Que se debruce sobre nós a Sorte,

Ou, tênue e longe, cale

Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento...

Sejamo-lo... Pra que o pensamento?...

 

1914

 

 

[Como a noite é longa!]

 

Como a noite é longa!

Toda a noite é assim...

Senta-te, ama, perto

Do leito onde esperto.

Vem pra o pé de mim...

 

Amei tanta coisa...

Hoje nada existe.

Aqui ao pé da cama

Canta-me, minha ama,

Uma canção triste.

 

Era uma princesa

Que amou... Já não sei...

Como estou esquecido!

Canta-me ao ouvido

E adormecerei...

 

Que é feito de tudo?

Que fiz eu de mim?

Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir

E seja isto o fim.

 

1914

 

 

[Bate a luz no cimo]

 

Bate a luz no cimo

Da montanha, vê...

Sem querer, eu cismo

Mas não sei em quê...

 

Não sei que perdi

Ou que não achei...

Vida que vivi,

Que mal eu a amei!...

 

Hoje quero tanto

Que o não posso ter.

De manhã há o pranto

E ao anoitecer.

 

Tomara eu ter jeito

Para ser feliz...

Como o mundo é estreito,

E o pouco que eu quis!

 

Vai morrendo a luz

No alto da montanha...

Como um rio a flux

A minha alma banha.

 

Mas não me acarinha,

Não me acalma nada...

Pobre criancinha

Perdida na estrada!...

 

1914

 

 

[Saber? Que sei eu?]

 

Saber? Que sei eu?

Pensar é descrer.

— Leve e azul é o céu —

Tudo é tão difícil

De compreender!...

 

A ciência, uma fada

Num conto de louco...

— A luz é lavada —

Como o que nós vemos

É nítido e pouco!

 

Que sei eu que abrande

Meu anseio fundo?

Ó céu real e grande,

Não saber o modo

De pensar o mundo!

 

1914

 

 

[Vai redonda e alta a lua]

 

Vai redonda e alta

A lua. Que dor

É em mim um amor?...

Não sei que me falta...

 

Não sei o que quero.

Nem posso sonhá-lo...

Como o luar é ralo

No chão vago e austero!...

 

Ponho-me a sorrir

Pra a ideia de mim...

E tão triste, assim

Como quem está a ouvir

 

Uma voz que o chama

Mas não sabe donde

(Voz que em si se esconde)

E Só a ela ama...

 

E tudo isto é o luar

E a minha dor

Tornado exterior

Ao meu meditar...

 

Que desassossego!

Que inquieta ilusão!

E esta sensação

Oca, de ser cego

 

No meu pensamento,

Na rainha vontade...

Ah, a suavidade

Do luar sem tormento

 

Batendo na alma

De quem só sentisse

O luar, e existisse

Só pra a sua calma.

 

1914

 

 

[Sopra demais o vento]

 

Sopra demais o vento

Para eu poder descansar...

Há no meu pensamento

Qualquer coisa que vai parar...

 

Talvez essa coisa da alma

Que acha real a vida...

Talvez esta coisa calma

Que me faz a alma vivida...

 

Sopra um vento excessivo...

Tenho medo de pensar...

O meu mistério eu avivo

Se me perco a meditar.

 

Vento que passa e esquece,

Poeira que se ergue e cai...

Ai de mim se eu pudesse

Saber o que em mim vai!

 

1914

 

 

[Nenhuma chuva cai...]

 

Chove?... Nenhuma chuva cai...

Então onde é que eu sinto um dia

Em que o ruído da chuva atrai

A minha inútil agonia?

 

Onde é que chove, que eu o ouço?

Onde é que é triste, ó claro céu?

Eu quero sorrir-te, e não posso,

Ó céu azul, chamar-te meu...

 

E o escuro ruído da chuva

É constante em meu pensamento.

Meu ser é a invisível curva

Traçada pelo som do vento...

 

E eis que ante o sol e o azul do dia,

Como se a hora me estorvasse,

Eu sofro... E a luz e a sua alegria

Cai aos meus pés como um disfarce.

 

Ah, na minha alma sempre chove.

Há sempre escuro dentro em mim.

Se escuto, alguém dentro em mim ouve

A chuva, como a voz de um fim...

 

Quando é que eu serei da tua cor,

Do teu plácido e azul encanto,

Ó claro dia exterior,

Ó céu mais útil que o meu pranto?

 

1914

 

 

[Ameaçou chuva]

 

Ameaçou chuva. E a negra

Nuvem passou sem mais...

Todo o meu ser se alegra

Em alegrias iguais.

 

Nuvem que passa... Céu

Que fica e nada diz...

Vazio azul sem véu

Sobre a terra feliz...

 

E a terra é verde, verde...

Porque então minha vista

Por meus sonhos se perde?

De que é que a minha alma dista?

 

1914/15 (?)

 

 

[Meu pensamento é um rio subterrâneo]

 

Meu pensamento é um rio subterrâneo.

Para que terras vai e donde vem?

Não sei... Na noite em que o meu ser o tem

Emerge dele um ruído subitâneo

 

De origens no Mistério extraviadas

De eu compreendê-las..., misteriosas fontes

Habitando a distância de ermos montes

Onde os momentos são a Deus chegados...

 

De vez em quando luze em minha mágoa

Como um farol num mar desconhecido

Um movimento de correr, perdido

Em mim, um pálido soluço de água...

 

E eu relembro de tempos mais antigos

Que a minha consciência da ilusão

Águas divinas percorrendo o chão

De verdores uníssonos e amigos,

 

E a ideia de uma Pátria anterior

À forma consciente do meu ser

Dói-me no que desejo, e vem bater

Como uma onda de encontro à minha dor.

 

Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto

Da minha alma, perdido som incerto,

Como um eterno rio indescoberto,

Mais que a ideia de rio certo e abstrato...

 

E pra onde é que ele vai, que se extravia

Do meu ouvi-lo ? A que cavernas desce?

Em que frios de Assombro é que arrefece?

De que névoas soturnas se anuvia?

 

Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa

A luz e a cor do mundo claro e atual,

E na interior distância do meu Real

Como se a alma acabasse, o rio cessa...

 

1914/15 (?)

 

 

[Nunca o saberei...]

 

Não sei, ama, onde era,

Nunca o saberei...

Sei que era Primavera

E o jardim do rei...

(Filha, quem o soubera!...).

 

Que azul tão azul tinha

Ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha,

Porque era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha?).

 

E o jardim tinha flores

De que não me sei lembrar...

Flores de tantas cores...

Penso e fico a chorar...

(Filha, os sonhos são dores...).

 

Qualquer dia viria

Qualquer coisa a fazer

Toda aquela alegria

Mais alegria nascer

(Filha, o resto é morrer...).

 

Conta-me contos, ama...

Todos os contos são

Esse dia, e jardim e a dama

Que eu fui nessa solidão...

 

1916

 

 

[Passos da Cruz]

 

I

 

Esqueço-me das horas transviadas...

O Outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros...

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

 

Aconteceu-me esta paisagem, fadas

De sepulcros a orgíaco... Trigueiros

Os céus da tua face, e os derradeiros

Tons do poente segredam nas arcadas...

 

No claustro sequestrando a lucidez

Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés

 

No meu cansaço perdido entre os gelos,

E a cor do Outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância...

 

 

II

 

Há um poeta em mim que Deus me disse...

A Primavera esquece nos barrancos

As grinaldas que trouxe dos arrancos

Da sua efémera e espectral ledice...

 

Pelo prado orvalhado a meninice

Faz soar a alegria os seus tamancos...

Pobre de anseios teu ficar nos bancos

Olhando a hora como quem sorrisse...

 

Florir do dia a capitéis de Luz...

Violinos do silêncio enternecidos...

Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

 

Minha alma beija o quadro que pintou...

Sento-me ao pé dos séculos perdidos

E cismo o seu perfil de inércia e voo...

 

 

III

 

Adagas cujas joias velhas galas...

Opalesci amar-me entre mãos raras,

E, fluido a febres entre um lembrar de aras,

O convés sem ninguém cheio de malas...

 

O íntimo silêncio das opalas

Conduz orientes até joias caras,

E o meu anseio vai nas rotas claras

De um grande sonho cheio de ócio e salas...

 

Passa o cortejo imperial, e ao longe

O povo só pelo cessar das lanças

Sabe que passa o seu tirano, e estruge

 

Sua ovação, e erguem as crianças...

Mas no teclado as tuas mãos pararam

E indefinidamente repousaram...

 

 

IV

 

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse

Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,

E, beijando-o, descesse pelos desvãos

Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

 

Tornado Puro Gesto, gesto-face

Da medalha sinistra — reis cristãos

Ajoelhando, inimigos e irmãos,

Quando processional o andor passasse!...

 

Teu gesto que arrepanha e se extasia...

O teu gesto completo, lua fria

Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

 

Caverna em estalactites o teu gesto...

Não poder eu prendê-lo, fazer mais

Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...

 

 

V

 

Tênue, roçando sedas pelas horas,

Teu vulto ciciante passa e esquece,

E dia a dia adias para prece

O rito cujo ritmo só decoras...

 

Um mar longínquo e próximo humedece

Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...

E, alada, leve, sobre a dor que choras,

Sem querer saber de ti a tarde desce...

 

Erra no anteluar a voz dos tanques...

Na quinta imensa gorgolejam águas,

Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

 

Meu império é das horas desiguais,

E dei meu gesto lasso às algas mágoas

Que há para além de sermos outonais...

 

 

VI

 

Venho de longe e trago no perfil,

Em forma nevoenta e afastada,

O perfil de outro ser que desagrada

Ao meu atual recorte humano e vil.

 

Outrora fui talvez, não Boabdil,

Mas o seu mero último olhar, da estrada

Dado ao deixado vulto de Granada,

Recorte frio sob o unido anil...

 

Hoje sou a saudade imperial

Do que já na distância de mim vi...

Eu próprio sou aquilo que perdi...

 

E nesta estrada para Desigual

Florem em esguia glória marginal

Os girassóis do império que morri...

 

 

VII

 

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,

Uma coisa existente sem viver,

Noite de Vida sem amanhecer

Entre as sirtes do meu dourado assomo...

 

Fada maliciosa ou incerto gnomo

Fadado houvesse de não pertencer

Meu intuito gloríola com ter

A árvore do meu uso o único pomo...

 

Fosse eu uma metáfora somente

Escrita nalgum livro insubsistente

Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

 

Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,

Morrendo entre bandeiras desfraldadas

Na última tarde de um império em chamas...

 

 

VIII

 

Ignorado ficasse o meu destino

Entre pálios (e a ponte sempre à vista),

E anel concluso a chispas de ametista

A frase falha do meu póstumo hino...

 

Florescesse em meu glabro desatino

O himeneu das escadas da conquista

Cuja preguiça, arrecadada, dista

Almas do meu impulso cristalino...

 

Meus ócios ricos assim fossem, vilas

Pelo campo romano, e a toga traça

No meu soslaio anónimas (desgraça

 

A vida) curvas sob mãos intranquilas...

E tudo sem Cleópatra teria

Findado perto de onde raia o dia...

 

 

IX

 

Meu coração é um pórtico partido

Dando excessivamente sobre o mar

Vejo em minha alma as velas vãs passar

E cada vela passa num sentido.

 

Um soslaio de sombras e ruído

Na transparente solidão do ar

Evoca estrelas sobre a noite estar

Em afastados céus o pórtico ido...

 

E em palmares de Antilhas entrevistas

Através de, com mãos eis apartados

Os sonhos, cortinados de ametistas,

 

Imperfeito o sabor de compensando

O grande espaço entre os troféus alçados

Ao centro do triunfo em ruído e bando...

 

 

X

 

Aconteceu-me do alto do infinito

Esta vida. Através de nevoeiros,

Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,

Vim ganhando, e através estranhos ritos

 

De sombra e luz ocasional, e gritos

Vagos ao longe, e assomos passageiros

De saudade incógnita, luzeiros

De divino, este ser fosco e proscrito...

 

Caiu chuva em passados que fui eu.

Houve planícies de céu baixo e neve

Nalguma coisa de alma do que é meu.

 

Narrei-me a sombra e não me achei sentido

Hoje sei-me o deserto onde Deus teve

Outrora a sua capital de olvido...

 

 

XI

 

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela

E oculta mão colora alguém em mim.

Pus a alma no nexo de perdê-la

E o meu princípio floresceu em Fim.

 

Que importa o tédio que dentro em mim gela,

E o leve Outono, e as galas, e o marfim,

E a congruência da alma que se vela

Com os sonhados pálios de cetim?

 

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...

Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...

O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...

 

E, abrindo as asas sobre Renovar,

A erma sombra do voo começado

Pestaneja no campo abandonado...

 

 

XII

 

Ela ia, tranquila pastorinha,

Pela estrada da minha imperfeição.

Seguia-a, como um gesto de perdão,

O seu rebanho, a saudade minha...

 

“Em longes terras hás de ser rainha”

Um dia lhe disseram, mas em vão...

Seu vulto perde-se na escuridão...

Só sua sombra ante meus pés caminha...

 

Deus te dê lírios em vez desta hora,

E em terras longe do que eu hoje sinto

Serás, rainha não, mas só pastora —

 

Só sempre a mesma pastorinha a ir,

E eu serei teu regresso, esse indistinto

Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

 

 

XIII

 

Emissário de um rei desconhecido

Eu cumpro informes instruções de além,

E as bruscas frases que aos meus lábios vêm

Soam-me a um outro e anômalo sentido...

 

Inconscientemente me divido

Entre mim e a missão que o meu ser tem,

E a glória do meu Rei dá-me o desdém

Por este humano povo entre quem lido...

 

Não sei se existe o Rei que me mandou

Minha missão será eu a esquecer,

Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

 

Mas há! Eu sinto-me altas tradições

De antes de tempo e espaço e vida e ser...

Já viram Deus as minhas sensações...

 

 

XIV

 

Como uma voz de fonte que cessasse

(E uns para os outros nossos vãos olhares

Se admiraram), para além dos meus palmares

De sonho, a voz que do meu tédio nasce

 

Parou... Apareceu já sem disfarce

De música longínqua, asas nos ares,

O mistério silente como os mares,

Quando morreu o vento e a calma pasce...

 

A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Para o mistério, silêncio a que a hora assiste...

 

E, perto ou longe, grande lago mudo,

O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

 

1914-1916

 

 

[Um frio lunar]

 

Há no firmamento

Um frio lunar.

Um vento nevoento

Vem de ver o mar.

 

Quase maresia

A hora interroga,

E uma angústia fria

Indistinta voga.

 

Não sei o que faça,

Não sei o que penso,

O frio não passa

E o tédio é imenso.

 

Não tenho sentido,

Alma ou intenção...

Estou no meu olvido...

Dorme, coração...

 

1917

 

 

[Algum fantasma oculto]

 

Súbita mão de algum fantasma oculto

Entre as dobras da noite e do meu sono

Sacode-me e eu acordo, e no abandono

Da noite não enxergo gesto ou vulto.

 

Mas um terror antigo, que insepulto

Trago no coração, como de um trono

Desce e se afirma meu senhor e dono

Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

 

E eu sinto a minha vida de repente

Presa por uma corda de Inconsciente

A qualquer mão noturna que me guia.

 

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra

De um vulto que não vejo e que me assombra,

E em nada existo como a treva fria.

 

1917

 

 

[Para onde vai a minha vida, e quem a leva?]

 

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?

Por que faço eu sempre o que não queria?

Que destino contínuo se passa em mim na treva?

Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

 

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,

A minha vida segue uma rota e uma escala,

Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito

Daquilo que faço e que sou; não me iguala.

 

Não me compreendo nem no que, compreendendo, faço.

Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.

É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.

Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

 

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?

Além da minha alma, que outra alma há na minha?

Por que me destes o sentimento de um rumo,

Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

 

Senão com um uso não dos meus passos, senão

Com um destino escondido de mim nos meus atos?

Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?

Que sou eu entre quê e os fatos?

 

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!

Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,

Ao menos goze esse nada, sem fé, mas com calma,

Ao menos durma viver, como uma praia esquecida...

 

1917

 

 

[Intervalo]

 

Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm escutado —

Aquele amor cheio de crença e medo

Que é verdadeiro só se é segredado?...

Quem te disse tão cedo?

 

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.

Não foi um outro, porque o não sabia.

Mas quem roçou da testa teu cabelo

E te disse ao ouvido o que sentia?

Seria alguém, seria?

 

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?

Foi só qualquer ciúme meu de ti

Que o supôs dito, porque o não direi,

Que o supôs feito, porque o só fingi

Em sonhos que nem sei?

 

Seja o que for, quem foi que levemente,

A teu ouvido vagamente atento,

Te falou desse amor em mim presente

Mas que não passa do meu pensamento

Que anseia e que não sente?

 

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

A teus ouvidos de eu sonhar-te disse

A frase eterna, imerecida e louca —

A que as deusas esperam da ledice

Com que o Olimpo se apouca.

 

1917 (?)

 

 

[A Múmia]

 

I

 

Andei léguas de sombra

Dentro em meu pensamento.

Floresceu às avessas

Meu ócio com sem-nexo,

E apagaram-me as lâmpadas

Na alcova cambaleante.

 

Tudo prestes se volve

Um deserto macio

Visto pelo meu tacto

Dos veludos da alcova,

Não pela minha vista.

Há um oásis no Incerto

E, como uma suspeita

De luz por não-há-frinchas,

Passa uma caravana.

 

Esquece-me de súbito

Como é o espaço, e o tempo

Em vez de horizontal

É vertical.

 

A alcova

Desce não sei por onde

Até não me encontrar

Ascende um leve fumo

Das minhas sensações.

Deixo de me incluir

Dentro de mim. Não há

Cá-dentro nem lá-fora.

 

E o deserto está agora

Virado para baixo.

 

A noção de mover-me

Esqueceu-se do meu nome.

 

Na alma meu corpo pesa-me.

Sinto-me um reposteiro

Pendurado na sala

Onde jaz alguém morto.

 

Qualquer coisa caiu

E tiniu no infinito.

 

 

II

 

Na sombra Cleópatra jaz morta.

Chove.

 

Embandeiraram o barco de maneira errada.

Chove sempre.

 

Para que olhas tu a cidade longínqua?

Tua alma é a cidade longínqua.

Chove friamente.

 

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto —

Todos nós embalamos ao colo um filho morto.

Chove, chove.

 

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,

Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.

Porque é que chove?

 

 

III

 

Em mim o Universo —

É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre

Minha ideia das coisas.

 

Se acenderem as velas

E não houver apenas

A vaga luz de fora —

Não sei que candeeiro

Aceso onde na rua —

Terei foscos desejos

De nunca haver mais nada

No Universo e na Vida

De que o obscuro momento

Que é minha vida agora.

 

Um momento afluente

Dum rio sempre a ir

Esquecer-se de ser,

Espaço misterioso

Entre espaços desertos

Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.

 

E assim a hora passa

Metafisicamente.

 

 

IV

 

As minhas ansiedades caem

Por uma escada abaixo

Os meus desejos balançam-se

Em meio de um jardim vertical.

 

Na Múmia a posição é absolutamente exata.

 

Música longínqua,

Música excessivamente longínqua,

Para que a Vida passe

E colher esqueça aos gestos.

 

 

V

 

Porque abrem as coisas alas para eu passar?

Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.

Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.

 

Mas há sempre coisas atrás de mim.

Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.

Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.

Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.

Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.

 

Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis

A porta abrindo-se conscientemente

Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.

De onde é que estão olhando para mim?

Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?

Quem espreita de tudo?

 

As arestas fitam-me.

Sorriem realmente as paredes lisas.

 

Sensação de ser só a minha espinha.

 

As espadas.

 

1917 (ou anterior)

 

 

[Ficções do interlúdio]

 

I. Plenilúnio

 

As horas pela alameda

Arrastam vestes de seda,

 

Vestes de seda sonhada

Pela alameda alongada

 

Sob o azular do luar...

E ouve-se no ar a expirar —

 

A expirar mas nunca expira

Uma flauta que delira,

 

Que é mais a ideia de ouvi-la

Que ouvi-la quase tranquila

 

Pelo ar a ondear e a ir...

Silêncio a tremeluzir...

 

 

II.