Saudade dada

 

Em horas inda louras, lindas

Clorindas e Belindas, brandas,

Brincam no tempo das berlindas,

As vindas vendo das varandas.

De onde ouvem vir a rir as vindas

Fitam a fio as frias bandas.

 

Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

 

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.

 

E há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos santos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos...

Prantos de intentos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

 

 

III. Pierrô bêbado

 

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Só a lua cheia

Branqueia e clareia

As ruas da feira

Na noite entreaberta.

 

Só a lua alva

Branqueia e clareia

A paisagem calva

De abandono e alva

Alegria alheia.

 

Bêbeda branqueia

Como pela areia

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Na noite já cheia

De sombra entreaberta.

 

A lua branqueia

Nas ruas da feira

Deserta e incerta...

 

 

IV. Minuete invisível

 

Elas são vaporosas,

Pálidas sombras, as rosas

Nadas da hora lunar...

 

Vêm, aéreas, dançar

Com perfumes soltos

Entre os canteiros e os buxos...

 

Chora no som dos repuxos

O ritmo que há nos seus vultos...

 

Passam e agitam a brisa...

Pálida, a pompa indecisa

Da sua flébil demora

Paira em auréola à hora...

 

Passam nos ritmos da sombra...

Ora é uma folha que tomba,

Ora uma brisa que treme

Sua leveza solene...

 

E assim vão indo, delindo

Seu perfil único e lindo,

Seu vulto feito de todas,

Nas alamedas, em rodas,

No jardim lívido e frio...

 

Passam sozinhas, a fio,

Como um fumo indo, a rarear,

Pelo ar longínquo e vazio,

Sob o, disperso pelo ar,

Pálido pálio lunar...

 

 

V. Hiemal

 

Baladas de uma outra terra, aliadas

Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,

Retinem lívidas ainda aos ouvidos

 

Dos luares das altas noites aladas...

Pelos canais barcas erradas

Segredam-se rumos descridos...

 

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,

As fadas são belas, e as estrelas

São delas... Ei-las alheadas...

 

E são fumos os rumos das barcas sonhadas,

Nos canais fatais iguais de erradas,

As barcas parcas das fadas,

Das fadas aladas e hiemais

E caladas...

 

Toadas afastadas, irreais, de baladas...

Ais...

 

1913-1917

 

 

[O sol vagamente doura]

 

O sol às casas, como a montes,

Vagamente doura.

Na cidade sem horizontes

Uma tristeza loura.

 

Com a sombra da tarde desce

E um pouco dói

Porque quanto é tarde

Tudo quanto foi.

 

Nesta hora mais que em outra choro

O que perdi.

Em cinza e ouro o rememoro

E nunca o vi.

 

Felicidade por nascer,

Mágoa a acabar,

Ânsia de só aquilo ser

Que há de ficar —

Sussurro sem que se ouça, palma

Da isenção.

Ó tarde, fica noite, e alma

Tenha perdão.

 

1918

 

 

[Ah! A angústia]

 

Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero

De não poder confessar

Num tom de grito, num último grito austero

Meu coração a sangrar!

 

Falo, e as palavras que digo são um som

Sofro, e sou eu.

Ah! Arrancar a música o segredo do tom

Do grito seu!

 

Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar,

De o grito não ter

Alcance maior que o silêncio, que volta, do ar

Na noite sem ser!

 

1920

 

 

[Onde pus a esperança]

 

Onde pus a esperança, as rosas

Murcharam logo.

Na casa, onde fui habitar,

O jardim, que eu amei por ser

Ali o melhor lugar,

E por quem essa casa amei —

Decerto o achei,

E, quando o tive, sem razão para o ter

 

Onde pus a afeição, secou

A fonte logo.

Da floresta, que fui buscar

Por essa fonte ali tecer

Seu canto de rezar —

Quando na sombra penetrei,

Só o lugar achei

Da fonte seca, inútil de se ter.

 

Para quê, pois, afeição, esperança,

Se perco, logo

Que as uso, a causa para as usar,

Se tê-las sabe a não as ter?

Crer ou amar —

Até à raiz, do peito onde alberguei

Tais sonhos e os gozei,

O vento arranque e leve onde quiser

E eu os não possa achar!

 

1920

 

 

[Abdicação]

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu ceptro e coroa, — eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

 

1920 (?)

 

 

[Na hora suave]

 

Ah, quanta vez, na hora suave

Em que me esqueço,

Vejo passar um voo de ave

E me entristeço!

 

Porque é ligeiro, leve, certo

No ar de amavio?

Porque vai sob o céu aberto

Sem um desvio?

 

Porque ter asas simboliza

A liberdade

Que a vida nega e a alma precisa?

Sei que me invade

 

Um horror de me ter que cobre

Como uma cheia

Meu coração, e entorna sobre

Minha alma alheia

 

Um desejo, não de ser ave,

Mas de poder

Ter não sei quê do voo suave

Dentro em meu ser.

 

1921

 

 

[Feliz dia]

 

Feliz dia para quem é

O igual do dia,

E no exterior azul que vê

Simples confia!

 

O azul do céu faz pena a quem

Não pode ser

Na alma um azul do céu também

Com que viver

 

Ah, e se o verde com que estão

Os montes quedos

Pudesse haver no coração

E em seus segredos!

 

Mas vejo quem devia estar

Igual do dia

Insciente e sem querer passar.

Ah, a ironia

 

De só sentir a terra e o céu

Tão belos ser

Quem de si sente que perdeu

A alma para os ter!

 

1921

 

 

[Natal]

 

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

 

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo Deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.

 

(sem data)

 

 

[No entardecer da terra]

 

No entardecer da terra

O sopro do longo Outono

Amareleceu o chão.

Um vago vento erra,

Como um sonho mau num sono,

Na lívida solidão.

 

Soergue as folhas, e pousa

As folhas, e volve, e revolve,

E esvai-se inda outra vez.

Mas a folha não repousa,

E o vento lívido volve

E expira na lividez.

 

Eu já não sou quem era;

O que eu sonhei, morri-o;

E até do que hoje sou

Amanhã direi, quem dera

volver a sê-lo!... Mais frio

O vento vago voltou.

 

1924 (ou anterior)

 

 

[Ó sino da minha aldeia]

 

Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

 

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

 

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.

 

A cada pancada tua

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

 

1913 (?)

 

 

[Um canto de ave]

 

Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar com que principia

O dia.

Escuto, e passou...

Parece que foi só porque escutei

Que parou.

 

Nunca, nunca, em nada,

Raie a madrugada,

Ou esplenda o dia, ou doure no declive,

Tive

Prazer a durar

Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir

Gozar.

 

1920 (?)

 

 

[Pobre velha música!]

 

Pobre velha música!

Não sei porque agrado,

Enche-se de lágrimas

Meu olhar parado.

 

Recordo outro ouvir-te.

Não sei se te ouvi

Nessa minha infância

Que me lembra em ti.

 

Com que ânsia tão raiva

Quero aquele outrora!

E eu era feliz? Não sei:

Fui-o outrora agora.

 

1924 (ou anterior)

 

 

[Deixa-me sonhar...]

 

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.

 

A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.

 

Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.

 

1924 (ou anterior)

 

 

[Sol nulo dos dias vãos]

 

Sol nulo dos dias vãos,

Cheios de lida e de calma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!

 

Que ao menos a mão, roçando

A mão que por ela passe

Com externo calor brando

O frio da alma disfarce!

 

Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De a não mostrar a ninguém!

 

1920 (?)

 

 

[Trila na noite uma flauta]

 

Trila na noite uma flauta. É de algum

Pastor? Que importa? Perdida

Série de notas vaga e sem sentido nenhum.

Como a vida.

 

Sem nexo ou princípio ou fim ondeia

A ária alada.

Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia

De não ser nada!

 

Não há nexo ou fio por que se lembre aquela

Ária, ao parar;

E já ao ouvi-la sofro a saudade dela

E o quando cessar.

 

1924 (ou anterior)

 

 

[Põe-me as mãos nos ombros...]

 

Põe-me as mãos nos ombros...

Beija-me na fronte...

Minha vida é escombros,

A minha alma insonte [inocente].

 

Eu não sei porquê,

Meu desde onde venho,

Sou o ser que vê,

E vê tudo estranho.

 

Põe a tua mão

Sobre o meu cabelo...

Tudo é ilusão.

Sonhar é sabê-lo.

 

1912 (?)

 

 

[Manhã dos outros!]

 

Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança

Só a quem já confia!

É só à dormente, e não à morta, esperança

Que acorda o teu dia.

 

A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo

Todo o sonho vão,

Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo

E a ter coração.

 

A esses raias sem o dia que trazes, ou somente

Como alguém que vem

Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,

Por não ser-nos ninguém.

 

1920 (?)

 

 

[Treme em luz a água]

 

Treme em luz a água.

Mal vejo. Parece

Que uma alheia mágoa

Na minha alma desce —

 

Mágoa erma de alguém

De algum outro mundo

Onde a dor é um bem

E o amor é profundo,

 

E só punge ver,

Ao longe, iludida,

A vida a morrer

O sonho da vida.

 

1920 (?)

 

 

[Dorme sobre o meu seio]

 

Dorme sobre o meu seio.

Sonhando de sonhar...

 

No teu olhar eu leio

Um lúbrico vagar.

Dorme no sonho de existir

E na ilusão de amar.

 

Tudo é nada, e tudo

Um sonho finge ser

O espaço negro é mudo.

Dorme, e, ao adormecer,

Saibas do coração sorrir

Sorrisos de esquecer.

 

Dorme sobre o meu seio,

Sem mágoa nem amor...

 

No teu olhar eu leio

O íntimo torpor

De quem conhece o nada-ser

De vida e gozo e dor.

 

1924 (ou anterior)

 

 

[Ao longe, ao luar]

 

Ao longe, ao luar,

No rio urna vela

Serena a passar,

Que é que me revela?

 

Não sei, mas meu ser

Tornou-se-me estranho,

E eu sonho sem ver

Os sonhos que tenho.

 

Que angústia me enlaça?

Que amor não se explica

É a vela que passa

Na noite que fica.

 

1924 (ou anterior)

 

 

[Em toda a noite o sono não vejo]

 

Em toda a noite o sono não veio. Agora

Raia do fundo

Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

Que faço eu no mundo?

Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

Coisa séria ou vã

 

Com olhos tontos da febre vã da vigília

Vejo com horror

O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

Do mundo e da dor —

Um dia igual aos outros, da eterna família

De serem assim.

 

Nem o símbolo ao menos vale, a significação

Da manhã que vem

Saindo lenta da própria essência da noite que era,

Para quem,

Por tantas vezes ter sempre esperado em vão,

Já nada espera.

 

1920 (?)

 

 

[Pobre ceifeira]

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

 

1914 (?)

 

 

[Sonho]

 

Sonho. Não sei quem sou neste momento.

Durmo sentindo-me. Na hora calma

Meu pensamento esquece o pensamento,

Minha alma não tem alma.

 

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo

Parece que erro. Sinto que não sei.

Nada quero nem tenho nem recordo.

Não tenho ser nem lei.

 

Lapso de consciência entre ilusões,

Fantasmas me limitam e me contém.

Dorme insciente de alheios corações,

Coração de ninguém.

 

1923

 

 

[Nada sou, nada posso, nada sigo]

 

Nada sou, nada posso, nada sigo.

Trago, por ilusão, meu ser comigo.

Não compreendo compreender, nem sei

Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

 

Fora disto, que é nada, sob o azul

Do lato céu um vento vão do sul

Acorda-me e estremece no verdor.

Ter razão, ter vitória, ter amor

 

Murcharam na haste morta da ilusão.

Sonhar é nada e não saber é vão.

Dorme na sombra, incerto coração.

 

1923

 

 

[Não é ainda a noite]

 

Não é ainda a noite

Mas é já frio o céu.

Do vento o ocioso açoite

Envolve o tédio meu.

 

Que vitórias perdidas

Por não as ter querido!

Quantas perdidas vidas!

E o sonho sem ter sido...

 

Ergue-te, ó vento, do ermo

Da noite que aparece!

Há um silêncio sem termo

Por trás do que estremece...

 

Pranto dos sonhos fúteis,

Que a memória acordou,

Inúteis, tão inúteis —

Quem me dirá quem sou?

 

1926

 

 

[De onde a brisa traz o olor]

 

Pouco importa de onde a brisa

Traz o olor que nela vem

O coração não precisa

De saber o que é o bem.

 

A mim me baste nesta hora

A melodia que embala,

Que importa se, sedutora,

As forças da alma cala?

 

Quem sou, para que o mundo perca

Com o que penso a sonhar?

Se a melodia me cerca

Vivo só o me cercar...

 

1926

 

 

[O menino da sua mãe]

 

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

— Duas, de lado a lado —,

Jaz morto, e arrefece.

 

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

 

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

“O menino da sua mãe”.

 

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

 

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lhe a criada

Velha que o trouxe ao colo.

 

Lá longe, em casa, há a prece:

“Que volte cedo, e bem!”

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

 

1926 (ou anterior)

 

 

[Marinha]

 

Ditosos a quem acena

Um lenço de despedida!

São felizes: têm pena...

Eu sofro sem pena a vida.

 

Doou-me até onde penso,

E a dor é já de pensar,

Órfão de um sonho suspenso

Pela maré a vazar...

 

E sobe até mim, já farto

De improfícuas agonias,

No cais de onde nunca parto,

A maresia dos dias.

 

1927 (ou anterior)

 

 

[Paira uma vibração]

 

Paira à tona de água

Uma vibração,

Há uma vaga mágoa

No meu coração.

 

Não é porque a brisa

Ou o que quer que seja

Faça esta indecisa

Vibração que adeja,

 

Nem é porque eu sinta

Uma dor qualquer.

Minha alma é indistinta

Não sabe o que quer.

 

É uma dor serena,

Sofre porque vê.

Tenho tanta pena!

Soubesse eu de quê!...

 

1928

 

 

[Qualquer música]

 

Qualquer música, ah, qualquer,

Logo que me tire da alma

Esta incerteza que quer

Qualquer impossível calma!

 

Qualquer música — guitarra,

Viola, harmônio, realejo...

Um canto que se desgarra...

Um sonho em que nada vejo...

 

Qualquer coisa que não vida!

Jota, fado, a confusão

Da última dança vivida...

Que eu não sinta o coração!

 

1928 (ou anterior)

 

 

[Depois da feira]

 

Vão vagos pela estrada,

Cantando sem razão

À última esperança dada

À última ilusão.

Não significam nada.

Mimos e bobos são.

 

Vão juntos e diversos

Sob um luar de ver,

Em que sonhos imersos

Nem saberão dizer,

E cantam aqueles versos

Que lembram sem querer.

 

Pajens de um morto mito,

Tão líricos!, tão sós!,

Não têm na voz um grito,

Mal têm a própria voz;

E ignora-os o infinito

Que nos ignora a nós.

 

1927 (?)

 

 

[Na província]

 

Natal... Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

 

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

Estou só e sonho saudade.

 

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!

 

1928 (ou anterior)

 

[Tenho dó das estrelas]

 

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

 

Não haverá um cansaço

Das coisas.

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

 

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

 

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão —

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

 

1928 (ou anterior)

 

 

[Abajur]

 

A lâmpada acesa

(Outrem a acendeu)

Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.

 

No quarto deserto

Salvo o meu sonhar,

Faz no chão incerto

Um círculo a ondear.

 

E entre a sombra e a luz

Que oscila no chão

Meu sonho conduz

Minha inatenção.

 

Bem sei... Era dia

E longe de aqui...

Quanto me sorria

O que nunca vi!

 

E no quarto silente

Com a Luz a ondear

Deixei vagamente

Até de sonhar...

 

1929

 

 

[Um muro de nuvens densas]

 

Um muro de nuvens densas

Põe na base do ocidente

Negras roxuras pretensas.

 

Com a noite tudo acaba.

O céu frio é transparente.

Nada de chuva desaba.

 

E não sei se tenho pena

Ou alegria da ausente

Chuva e da noite serena

 

De resto, nunca sei nada,

Minha alma é a sombra presente

De uma presença passada.

 

Meus sentimentos são rastros.

Só meu pensamento sente...

A noite esfria-se de astros.

 

1929

 

 

[Aqui na orla da praia]

 

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

 

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

 

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

 

Deem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;

Deem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

 

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

 

1929

 

 

[Como inútil taça cheia]

 

Como inútil taça cheia

Que ninguém ergue da mesa,

Transborda de dor alheia

Meu coração sem tristeza.

 

Sonhos de mágua figura

Só para ter que sentir

E assim não tem a amargura

Que se temeu a fingir.

 

Ficção num palco sem tábuas

Vestida de papel seda

Mima uma dança de mágoas

Para que nada suceda.

 

1930

 

 

[Gomes Leal]

 

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.

Seus três anéis irreversíveis são

A desgraça, a tristeza, a solidão.

Oito luas fatais fitam no espaço.

 

Este, poeta, Apolo em seu regaço

A Saturno entregou. A plúmbea mão

Lhe ergueu ao alto o aflito coração,

E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

 

Inúteis oito luas da loucura

Quando a cintura tríplice denota

Solidão e desgraça e amargura!

 

Mas da noite sem fim um rastro brota,

Vestígios de maligna formosura:

É a lua além de Deus, álgida e ignota.

 

1924 (?)

 

 

[Meus pensamentos de mágoa]

 

Boiam leves, desatentos,

Meus pensamentos de mágoa

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.

 

Boiam como folhas mortas

À tona de águas paradas.

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.

 

Sono de ser, sem remédio,

Vestígio do que não foi,

Leve mágoa, breve tédio,

Não sei se para, se flui;

Não sei se existe ou se dói.

 

1930

 

 

[Contemplo o lago mudo]

 

Contemplo o lago mudo

Que uma brisa estremece.

Não sei se penso em tudo

Ou se tudo me esquece.

 

O lago nada me diz.

Não sinto a brisa mexê-lo.

Não sei se sou feliz

Nem se desejo sê-lo.

 

Trémulos vincos risonhos

Na água adormecida.

Por que fiz eu dos sonhos

A minha única vida?

 

1930

 

 

[Entre a tormenta]

 

Às vezes entre a tormenta,

Quando já umedeceu,

Raia uma nesga de céu,

Com que a alma se alimenta.

 

E às vezes entre o torpor

Que não é tormenta da alma,

Raia uma espécie de calma

Que não conhece o langor.

 

E, quer num quer noutro caso,

Como o mal feito está feito,

Restam os versos que deito,

Vinho no copo do acaso.

 

Porque verdadeiramente

Sentir é tão complicado

Que é só andando enganado

É que se crê que se sente.

 

Sofremos? Os versos pecam.

Mentimos? Os versos falham.

E tudo é chuvas que orvalham

Folhas caídas que secam.

 

1930

 

 

[A surpresa de ser]

 

Dá a surpresa de ser

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

 

1930

 

 

[Tenho dito tantas vezes]

 

Tenho dito tantas vezes

Quanto sofro sem sofrer

Que me canso dos revezes

Que sonho só pra os não ter.

 

E esta dor que não tem mágoa,

Esta tristeza inatingível

Passa em mim como um som de água

Ouvido num outro nível.

 

E, de aí, talvez que seja

Uma nova antiga dor

Que outra vida minha esteja

Lembrando no meu torpor.

 

E é como a aragem que nasce

De ouvir música e sentir...

Ah, que a emoção em mim passe

Como se a estivesse a ouvir!

 

1930

 

 

[A sombra vasta]

 

Lenta e quieta a sombra vasta

Cobre o que vejo menos já.

Pouco somos, pouco nos basta.

O mundo tira o que nos dá.

Que nos contente o pouco que há.

 

A noite, vindo corno nada,

Lembra-me quem deixei de ser,

A curva anónima da estrada

Faz-me lembrar, faz-me esquecer,

Faz-me ter pena e ter de a ter.

 

Ó largos campos já cinzentos

Na noite, para além de mim,

Vou amanhã meus pensamentos

Enterrar onde estais assim.

Vou ter aí sossego e fim.

 

Poesia! Nada! A hora desce

Sem qualidade ou emoção.

Meu coração o que é que esquece?

Se é o que eu sinto que foi vão,

Porque me dói o coração?

 

1930

 

 

[É dia de Natal]

 

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal.

E o frio que ainda é pior.

 

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

 

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

 

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

 

1930

 

 

[Por trás daquela janela]

 

Por trás daquela janela

Cuja cortina não muda

Coloco a visão daquela

Que a alma em si mesma estuda

No desejo que a revela.

 

Não tenho falta de amor.

Quem me queira não me falta.

Mas teria outro sabor

Se isso fosse interior

Àquela janela alta.

 

Por quê? Se eu soubesse, tinha

Tudo o que desejo ter.

Amei outrora a Rainha,

E há sempre na alma minha

Um trono por preencher.

 

Sempre que posso sonhar,

Sempre que não vejo, ponho

O trono nesse lugar;

Além da cortina é o lar,

Além da janela o sonho.

 

Assim, passando, entreteço

O artifício do caminho

E um pouco de mim me esqueço

Pois mais nada à vida peço

Do que ser o seu vizinho.

 

1930

 

 

[O último sortilégio]

 

“Já repeti o antigo encantamento

E a grande Deusa aos olhos se negou.

Já repeti, nas pausas do amplo vento,

As orações cuja alma é um ser fecundo.

Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.

Só o vento volta onde estou toda e só,

E tudo dorme no confuso mundo.

 

Outrora meu condão fadava as sarças

E a minha evocação do solo erguia

Presenças concentradas das que esparsas

Dormem nas formas naturais das coisas.

Outrora a minha voz acontecia.

Fadas e elfos, se eu chamasse, via,

E as folhas da floresta eram lustrosas.

 

Minha varinha, com que da vontade

Falava às existências essenciais,

Já não conhece a minha realidade.

Já, se o círculo traço, não há nada.

Murmura o vento alheio extintos ais,

E ao luar que sobe além dos matagais

Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

 

Já me falece o dom com que me amavam.

Já me não torno a forma e o fim da vida

A quantos que, buscando-os, me buscavam.

Já, praia, o mar dos braços não me inunda.

Nem já me vejo ao sol saudado erguida,

Ou, em êxtase mágico perdida,

Ao luar, à boca da caverna funda.

 

Já as sacras potências infernais,

Que, dormentes sem deuses nem destino,

À substância das coisas são iguais,

Não ouvem minha voz ou os nomes seus.

A música partiu-se do meu hino.

Já meu furor astral não é divino

Nem meu corpo pensado é já um Deus.

 

E as longínquas deidades do atro poço,

Que tantas vezes, pálida, evoquei

Com a raiva de amar em alvoroço,

Inevocadas hoje ante mim estão.

Como, sem que as amasse, eu as chamei,

Agora, que não amo, as tenho, e sei

Que meu vendido ser consumirão.

 

Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,

Tu, Lua, cuja prata converti,

Se já não podeis dar-me essa beleza

Que tantas vezes tive por querer,

Ao menos meu ser findo dividi —

Meu ser essencial se perca em si,

Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

 

Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anónima presença que se beija,

Carne do meu abstrato amor cativo,

Seja a morte de mim em que revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!”

 

1930

 

 

[Gato que brincas na rua]

 

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

 

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

 

1931

 

 

[Não digas nada!]

 

Não: não digas nada!

Supor o que dirá

A tua boca velada

É ouvi-lo já.

 

É ouvi-lo melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das frases e dos dias.

 

És melhor do que tu.

Não digas nada; sê!

Graça do corpo nu

Que invisível se vê.

 

1931

 

 

[De onde é quase o horizonte]

 

De onde é quase o horizonte

Sobe uma névoa ligeira

E afaga o pequeno monte

Que para na dianteira.

 

E com braços de farrapo

Quase invisíveis e frios

Faz cair seu ser de trapo

Sobre os contornos macios.

 

Um pouco de alto medito

A névoa só com a ver.

A vida? Não acredito.

A crença? Não sei viver.

 

1931

 

 

[Vai uma nuvem errando]

 

Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.

 

O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma,

 

E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.

 

Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.

 

Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.

 

1931

 

 

[O andaime]

 

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

 

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.

 

A esperança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobe mais que a minha esperança.

Rola mais que o meu desejo.

 

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam — verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

 

Gastei tudo que não tinha

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha;

Despiu-se, e o reino acabou.

 

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

 

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

 

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só as lembranças,

Mas as mortas esperanças —

Mortas, porque hão de morrer.

 

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim —

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser — muro

Do meu deserto jardim.

 

Ondas passadas, levai-me

Para o olvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.

 

1924

 

 

[Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo]

 

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,

E a noite chega sem que eu saiba bem,

Quero considerar-me e ver aquilo

Que sou, e o que sou o que é que tem.

 

Olho por todo o meu passado e vejo

Que fui quem foi aquilo em torno meu,

Salvo o que o vago e incógnito desejo

De ser eu mesmo de meu ser me deu.

 

Como a páginas já relidas, vergo

Minha atenção sobre quem fui de mim,

E nada de verdade em mim albergo

Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

 

Como alguém distraído na viagem,

Segui por dois caminhos par a par.

Fui com o mundo, parte da paisagem;

Comigo fui, sem ver nem recordar.

 

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço

Que sou diverso no que informe estou.

No meu próprio caminho me atravesso

Não conheço quem fui no que hoje sou.

 

Serei eu, porque nada é impossível,

Vários trazidos de outros mundos, e

No mesmo ponto espacial sensível

Que sou eu, sendo eu por estar aqui?

 

Serei eu, porque todo o pensamento

Podendo conceber, bem pode ser,

Um dilatado e múrmuro momento,

De tempos-seres de quem sou o viver?

 

1931

 

 

[Guia-me a só razão]

 

Guia-me a só razão.

Não me deram mais guia

Alumia-me em vão?

Só ela me alumia.

 

Tivesse quem criou

O mundo desejado

Que eu fosse outro que sou

Ter-me-ia outro criado.

 

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

“Cego, fora eu bendito”?

 

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão

Olhar de conhecer.

 

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

 

1932

 

 

[Há quase um ano não escrevo]

 

Há quase um ano não escrevo.

Pesada, a meditação

Torna-me alguém que não devo

Interromper na atenção.

 

Tenho saudades de mim,

De quando, de alma alheada,

Eu era não ser assim,

E os versos vinham de nada.

 

Hoje penso quanto faço,

Escrevo sabendo o que digo...

Para quem desce do espaço

Este crepúsculo antigo?

 

1932

 

 

[Fúria nas trevas o vento]

 

Fúria nas trevas o vento

Num grande som de alongar

Não há no meu pensamento

Senão não poder parar.

 

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer

Uma loucura que vem

De querer compreender.

 

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.

Estou preso ao meu pensamento

Como o vento preso ao ar.

 

1932

 

 

[A morte é a curva da estrada]

 

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te ouço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

1932

 

 

[Quem bate à minha porta?]

 

Quem bate à minha porta

Tão insistentemente

Saberá que está morta

A alma que em mim sente?

 

Saberá que eu a velo

Desde que a noite é entrada

Com o vácuo e vão desvelo

De quem não vela nada?

 

Saberá que estou surdo?

Porque o sabe ou não sabe,

E assim bate, ermo e absurdo,

Até que o mundo acabe?

 

1932

 

 

[Iniciação]

 

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

 

...

 

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

 

Vem a noite, que é a morte

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

 

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

 

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

 

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

 

...

 

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não estás morto, entre ciprestes.

 

...

 

Neófito, não há morte.

 

1935 (ou anterior)

 

 

[Na sombra do Monte Abiegno]

 

Na sombra do Monte Abiegno

Repousei de meditar.

Vi no alto o alto Castelo

Onde sonhei de chegar.

Mas repousei de pensar

Na sombra do Monte Abiegno.

 

Quando fora amor ou vida,

Atrás de mim o deixei,

Quando fora desejá-los,

Porque esqueci não lembrei.

À sombra do Monte Abiegno

Repousei porque abdiquei.

 

Talvez um dia, mais forte

Da força ou da abdicação,

Tentarei o alto caminho

Por onde ao Castelo vão.

Na sombra do Monte Abiegno

Por ora repouso, e não.

 

Quem pode sentir descanso

Com o Castelo a chamar?

Está no alto, sem caminho

Senão o que há por achar.

Na sombra do Monte Abiegno

Meu sonho é de o encontrar.

 

Mas por ora estou dormindo,

Porque é sono o não saber.

Olho o Castelo de longe,

Mas não olho o meu querer.

Da sombra do Monte Abiegno

Que me virá desprender?

 

1932

 

 

[Do vale à montanha]

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por casas, por prados,

Por quinta e por fonte,

Caminhais aliados.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por penhascos pretos,

Atrás e defronte,

Caminhais secretos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por plainos desertos

Sem ter horizontes,

Caminhais libertos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por ínvios caminhos,

Por rios sem ponte,

Caminhais sozinhos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por quanto é sem fim,

Sem ninguém que o conte,

Caminhais em mim.

 

1932

 

 

[Cansa sentir quando se pensa]

 

Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

 

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

 

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negro astral silêncio surdo

E não poder viver assim.

 

(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negro sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo —

Ah, nada é isto, nada é assim!)

 

1932

 

 

[A quem o devo?]

 

Não meu, não meu é quanto escrevo,

A quem o devo?

De quem sou o arauto nado?

Porque, enganado,

Julguei ser meu o que era meu?

Que outro me deu?

Mas, seja como for, se a sorte

For eu ser morte

De uma outra vida que em mim vive,

Eu, o que estive

Em ilusão toda esta vida

Aparecida,

Sou grato. Ao que do pó que sou

Me levantou.

 

(E me fez nuvem um momento

De pensamento).

 

(Ao de quem sou, erguido pó,

Símbolo só).

 

1932

 

 

[Sorriso audível das folhas]

 

Sorriso audível das folhas,

Não és mais que a brisa ali.

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

 

Ri, e olha de repente,

Para fins de não olhar,

Para onde nas folhas sente

O som do vento passar.

Tudo é vento e disfarçar.

 

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou;

E estamos os dois falando

O que se não conversou.

Isto acaba ou começou?

 

1930

 

 

[Autopsicografia]

 

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

1931

 

 

[Isto]

 

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

 

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

 

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

 

1933 (ou anterior)

 

 

[Passa uma nuvem pelo sol]

 

Passa uma nuvem pelo sol

Passa uma pena por quem vê.

A alma é como um girassol:

Vira-se ao que não está ao pé.

 

Passou a nuvem; o sol volta.

A alegria girassolou.

Pendão latente de revolta,

Que hora maligna te enrolou?

 

1933

 

 

[É brando o dia]

 

É brando o dia, brando o vento.

É brando o sol e brando o céu.

Assim fosse meu pensamento!

Assim fosse eu, assim fosse eu!

 

Mas entre mim e as brandas glórias

Deste céu limpo e este ar sem mim

Intervêm sonhos e memórias...

Ser eu assim, ser eu assim!

 

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.

Existe tudo quanto existo.

Há porque vemos.

E tudo é isto, tudo é isto!

 

1933

 

 

[Entre o luar e a folhagem]

 

Entre o luar e a folhagem,

Entre o sossego e o arvoredo,

Entre o ser noite e haver aragem

Passa um segredo.

Segue-o minha alma na passagem

 

Tênue lembrança ou saudade,

Princípio ou fim do que não foi,

Não tem lugar, não tem verdade,

Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

 

Vazio encanto ébrio de si!

Tristeza ou alegria o traz?

O que sou dele a quem sorri?

Não é nem faz.

Só de segui-lo me perdi.

 

1933

 

 

[O cheiro de flores]

 

Ouço, como se o cheiro

De flores me acordasse...

É música — um canteiro

De influência e disfarce.

 

Impalpável lembrança,

Sorriso de ninguém,

Com aquela esperança

Que nem esperança tem...

 

Que importa, se sentir

É não se conhecer?

Ouço, e sinto sorrir

O que em mim nada quer.

 

1933

 

 

[Nuvens sobre a floresta]

 

Nuvens sobre a floresta...

Sombra com sombra a mais...

Minha tristeza é esta —

A das coisas reais.

 

A outra, a que pertence

Aos sonhos que perdi,

Nesta hora não me vence,

Se a há, não a há aqui.

 

Mas esta, a do arvoredo

Que o céu sem luz invade,

Faz-me receio e medo...

Quem foi minha saudade?

 

1933

 

 

[Não sei se é sonho, se realidade]

 

Não sei se é sonho, se realidade,

Se uma mistura de sonho e vida,

Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do sul se olvida.

É a que ansiamos. Ali, ali

A vida é jovem e o amor sorri

 

Talvez palmares inexistentes,

Áleas longínquas sem poder ser,

Sombra ou sossego deem aos crentes

De que essa terra se pode ter

Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,

Naquela terra, daquela vez,

 

Mas já sonhada se desvirtua,

Só de pensá-la cansou pensar;

Sob os palmares, à luz da lua,

Sente-se o frio de haver luar

Ah, nesta terra também, também

O mal não cessa, não dura o bem.

 

Não é com ilhas do fim do mundo,

Nem com palmares de sonho ou não,

Que cura a alma seu mal profundo,

Que o bem nos entra no coração.

É em nós que é tudo. É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

 

1933

 

 

[Aqui onde se espera]

 

Aqui onde se espera

— Sossego, só sossego —

Isso que outrora era,

 

Aqui onde, dormindo,

— Sossego, só sossego —

Se sente a noite vindo,

 

E nada importaria

— Sossego, só sossego —

Que fosse antes o dia,

 

Aqui, aqui estarei

— Sossego, só sossego —

Como no exílio um rei,

 

Gozando da ventura

— Sossego, só sossego —

De não ter a amargura

 

De reinar, mas guardando

— Sossego, só sossego —

O nome venerando...

 

Que mais quer quem descansa

— Sossego, só sossego —

Da dor e da esperança,

 

Que ter a negação

— Sossego, só sossego —

De todo o coração?

 

1933

 

 

[Redemoinha o vento]

 

Redemoinha o vento,

Anda à roda o ar.

Vai meu pensamento

Comigo a sonhar.

 

Vai saber na altura

Como no arvoredo

Se sente a frescura

Passar alta a medo.

 

Vai saber de eu ser

Aquilo que eu quis

Quando ouvi dizer

O que o vento diz.

 

1933

 

 

[Momento imperceptível]

 

Momento imperceptível,

Que coisa foste, que há

Já em mim qualquer coisa

Que nunca passará?

 

Sei que, passados anos,

O que isto é lembrarei,

Sem saber já o que era,

Que até já o não sei.

 

Mas, nada só que fosse,

Fica dele um ficar

Que será suave ainda

Quando eu o não lembrar.

 

1933

 

 

[Um rumor de pertencer]

 

Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segredo,

 

E que, pensando no abismo

Onde os ventos são ninguém,

Subisse até onde cismo,

E, alto, alado, num vaivém

 

De tormenta comovesse

As árvores agitadas

Até que delas me viesse

Este mau conto de fadas.

 

1933

 

 

[Quando as crianças brincam]

 

Quando as crianças brincam

E eu as ouço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.

 

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

 

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.

 

1933

 

 

[Passos tardam na relva]

 

Passos tardam na relva

Entre o luar e o luar,

Tudo é eflúvio e selva.

Sente-se alguém passar.

 

Passa, pisando leve

O chão que o luar desmente,

Num pálido hausto leve

De pisar levemente.

 

É elfo, é gnomo, é fada

A forma que ninguém vê?

Lembro: não houve nada.

Sinto, e a saudade crê.

 

1933

 

 

[O que me dói]

 

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

 

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

 

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

 

1933

 

 

[Por que é que um sono agita]

 

Porque é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em minha alma habita

E a faz não descansar?

 

Que externa sonolência,

Que absurda confusão,

Me oprime sem violência

Me faz ver sem visão?

 

Entre o que vivo e a vida,

Entre quem estou e sou,

Durmo numa descida,

Descida em que não vou.

 

E, num infiel regresso

Ao que já era bruma,

Sonolento me apresso

Para coisa nenhuma.

 

1933

 

 

[Contemplo o que não vejo]

 

Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro,

E quanto em mim desejo

Está parado ante o muro.

 

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

 

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

 

Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou

Não sinto, não sou triste,

Mas triste é o que estou.

 

1933

 

 

[Entre o sono e o sonho]

 

Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.

 

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

 

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

 

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre —

Esse rio sem fim.

 

1933

 

 

[A morte chega cedo]

 

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

 

1933

 

 

[Repousa sobre o trigo]

 

Repousa sobre o trigo

Que ondula um sol parado.

Não me entendo comigo.

Ando sempre enganado.

 

Tivesse eu conseguido

Nunca saber de mim,

Ter-me-ia esquecido

De ser esquecido assim.

 

O trigo mexe leve

Ao sol alheio e igual.

Como a alma aqui é breve

Com o seu bem e mal!

 

1933

 

 

[Tudo que faço ou medito]

 

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço —

 

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

 

1933

 

 

[Aquele clarão]

 

Se eu, ainda que ninguém,

Pudesse ter sobre a face

Aquele clarão fugace

Que aquelas árvores têm,

 

Teria aquela alegria

Que as coisas têm de fora,

Porque a alegria é da hora;

Vai com o sol quando esfria.

 

Qualquer coisa me valera

Melhor que a vida que tenho —

Ter esta vida de estranho

Que só do sol me viera!

 

1933

 

 

[Tenho tanto sentimento]

 

Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

 

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

 

Qual porém é verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

 

1933

 

 

[Durmo]

 

Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

Que coisas eu sonhei.

Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

Para um espaço aberto

Que não conheço, pois que despertei

Para o que inda não sei.

Melhor é nem sonhar nem não sonhar

E nunca despertar.

 

1933

 

 

[Viajar! Perder países!]

 

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

 

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

 

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

 

1933

 

 

[Coisa distante]

 

Que coisa distante

Está perto de mim?

Que brisa fragrante

Me vem neste instante

De ignoto jardim?

 

Se alguém me dissesse,

Não quisera crer.

Mas sinto-o, e é esse

O ar bom que me tece

Visões sem as ver.

 

Não sei se é dormindo

Ou alheado que estou;

Sei que estou sentindo

A boca sorrindo

Aos sonhos que sou.

 

1933

 

 

[Na ribeira deste rio]

 

Na ribeira deste rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio.

 

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz,

Numa sequência arrastada,

Do que ficou para trás.

 

Vou vendo e vou meditando,

Não bem no rio que passa

Mas só no que estou pensando,

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

 

Vou na ribeira do rio

Que está aqui ou ali,

E do seu curso me fio,

Porque, se o vi ou não vi.

Ele passa e eu confio.

 

1933

 

 

[No mal-estar em que vivo]

 

No mal-estar em que vivo

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo,

A mim mesmo minto.

 

Se fosse outro fora outro.

Se em mim houvesse certeza,

Não seria o fluido e neutro

Que ama a beleza.

 

Sim, que ama a beleza e a nega

Nesta vida sem bordão

Que contra si mesma alega

Que tudo é vão.

 

1933

 

 

[Quando era criança]

 

Quando era criança

Vivi, sem saber,

Só para hoje ter

Aquela lembrança.

 

E hoje que sinto

Aquilo que fui.

Minha vida flui,

Feita do que minto.

 

Mas nesta prisão,

Livro único, leio

O sorriso alheio

De quem fui então.

 

1933

 

 

[Chove. Há silêncio]

 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

Não faz ruído senão com sossego.

Chove.