nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.

 

Fama Fraternitatis Roseae Crucis.

 

I

 

Quando, despertos deste sono, a vida,

Soubermos o que somos, e o que foi

Essa queda até Corpo, essa descida

Até à noite que nos a Alma obstrui,

 

Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudo que há ou flui?

Não: nem na Alma livre é conhecida…

Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:

Adam Supremo, também teve Queda;

Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu…

De além o Abismo, Spirito Seu, Lha veda;

Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

 

 

II

 

Mas antes era o Verbo, aqui perdido

Quando a Infinita Luz, já apagada,

Do Caos, chão do Ser, foi levantada

Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,

Em si, que é Sombra, vê enfim luzido

O Verbo deste mundo, humano e ungido,

Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,

Podemos ir buscar além de Deus

O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Mas só de aqui, mas já de nós, despertos,

No sangue atual de Cristo enfim, libertos

Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III

 

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,

Dormimos o que somos, e a verdade,

Inda que enfim em sonhos a vejamos,

Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos

Como sentir a sua realidade?

Com mãos de sombra. Sombras, que tocamos?

Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?

Sem ver, ouvimos para além da sala

De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

Calmo na falsa morte a nós exposto,

O Livro ocluso contra o peito posto,

Nosso Pai Rosaeacruz conhece e cala.

 

1935 (?)

 

 

Comentário

 

As ordens ou fraternidades Rosa Cruz são organizações místicas e esotéricas que se pretendem herdeiras de diversas tradições espiritualistas antigas. Elas defendem a fraternidade entre todos os homens e mulheres. Para isso, é necessário que cada um altere os seus hábitos, atitudes e pensamentos e desenvolva as suas potencialidades, segundo sua “verdadeira vontade”.

A Ordem Rosa Cruz tem como símbolo uma ou mais rosas decorando uma cruz. As variações (uma cruz envolvida por uma coroa de rosas; uma cruz com uma rosa ao centro; junto ao símbolo um duplo triângulo ou uma estrela, etc.) permitem distinguir as diversas fraternidades.

De acordo com algumas teorias, a Cruz é um signo masculino, que representa a divina energia criadora e fecundante; e a Rosa é um signo feminino, que contém o ovo cósmico (o que será fecundado).

Fernando Pessoa (em A Procura da Verdade Oculta – Textos filosóficos e esotéricos) fala sobre o significado da Cruz e da Rosa: “A dupla essência, masculina e feminina, de Deus – a Cruz. O mundo gerado, a Rosa, crucificada em Deus”.

E mais adiante: “Todo o homem, que tenha [de] talhar para si um caminho para o Alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes. [...] Este processo de vitória, figuram-no os emblemadores no símbolo da crucificação da Rosa – ou seja, no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o círculo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o círculo), mas como produto do Espírito (que isso é a cruz)”.

 

 

[Glosa]

 

Quem me roubou a minha dor antiga,

E só a vida me deixou por dor?

Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,

Me deixou só no fogo e no torpor?

 

Quem fez a fantasia minha amiga,

Negando o fruto e emurchecendo a flor?

Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga

A seu infiel e irreal sabor...

 

Quem me dispôs para o que não pudesse?

Quem me fadou para o que não conheço

Na teia do real que ninguém tece?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava

E me deu só a vida em que me esqueço,

“Onde a minha saudade a cor se trava?”

 

(sem data)

 

 

[Assim, sem nada feito e o por fazer]

 

Assim, sem nada feito e o por fazer

Mal pensado, ou sonhado sem pensar,

Vejo os meus dias nulos decorrer,

E o cansaço de nada me aumentar.

 

Perdura, sim, como uma mocidade

Que a si mesma se sobrevive, a esperança,

Mas a mesma esperança o tédio invade,

E a mesma falsa mocidade cansa.

 

Tênue passar das horas sem proveito,

Leve correr dos dias sem ação,

Como a quem com saúde jaz no leito

Ou quem sempre se atrasa sem razão.

 

Vadio sem andar, meu ser inerte

Contempla-me, que esqueço de querer,

E a tarde exterior seu tédio verte

Sobre quem nada fez e nada quere.

 

Inútil vida, posta a um canto e ida

Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,

Obra solenemente por ser lida,

Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

 

(sem data)

 

 

[Esta espécie de loucura]

 

Esta espécie de loucura

Que é pouco chamar talento

E que brilha em mim, na escura

Confusão do pensamento,

 

Não me traz felicidade;

Porque, enfim, sempre haverá

Sol ou sombra na cidade.

Mas em mim não sei o que há.

 

(sem data)

 

 

[Entre o bater rasgado dos pendões]

 

Entre o bater rasgado dos pendões

E o cessar dos clarins na tarde alheia,

A derrota ficou: como uma cheia

Do mal cobriu os vagos batalhões.

 

Foi em vão que o Rei louco os seus varões

Trouxe ao prolixo prélio, sem ideia.

Água que mão infiel verteu na areia —

Tudo morreu, sem rastro e sem razões.

 

A noite cobre o campo, que o Destino

Com a morte tornou abandonado.

Cessou, com cessar tudo, o desatino.

 

Só no luar que nasce os pendões rotos

Estrelam no absurdo campo desolado

Uma derrota heráldica de ignotos.

 

(sem data)

 

 

[A minha vida é um barco abandonado]

 

A minha vida é um barco abandonado

Infiel, no ermo porto, ao seu destino.

Por que não ergue ferro e segue o atino

De navegar, casado com o seu fado?

 

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado

Torne seu vulto em velas; peregrino

Frescor de afastamento, no divino

Amplexo da manhã, puro e salgado.

 

Morto corpo da ação sem vontade

Que o viva, vulto estéril de viver,

Boiando à tona inútil da saudade.

 

Os limos esverdeiam tua quilha,

O vento embala-te sem te mover,

E é para além do mar a ansiada Ilha.

 

(sem data)

 

 

[Os deuses vão-se como forasteiros]

 

Os deuses vão-se como forasteiros

Como uma feira acaba a tradição.

Somos todos palhaços estrangeiros,

A nossa vida é palco e confusão.

 

Ah, dormir tudo! Pôr um sono à roda

Do esforço inútil e da sorte incerta!

Que a morte virtual da vida toda

Seja, sons, a janela que, entreaberta,

 

Só um crepúsculo do mundo deixe

Chegar à sonolência que se sente;

E a alma se desfaça como um feixe

Atado pelos dedos dum demente...

 

(sem data)

 

 

[Já não se torna a eterna primavera]

 

Se já não torna a eterna primavera

Que em sonhos conheci,

O que é que o exausto coração espera

Do que não tem em si?

 

Se não há mais florir de árvores feitas

Só de alguém as sonhar,

Que coisas quer o coração perfeitas,

Quando, e em que lugar?

 

Não: contentemo-nos com ter a aragem

Que, porque existe, vem

Passar a mão sobre o alto da folhagem

E assim nos faz um bem.

 

(sem data)

 

Epílogo

 

 

 

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)

 

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

 

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.

 

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

 

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.

 

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento —

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.

 

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.

 

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.