O céu dorme. Quando a alma é viúva

Do que não sabe, o sentimento é cego.

Chove. Meu ser (quem sou) renego...

 

Tão calma é a chuva que se solta no ar

(Nem parece de nuvens) que parece

Que não é chuva, mas um sussurrar

Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.

Chove. Nada apetece...

 

Não paira vento, não há céu que eu sinta.

Chove longínqua e indistintamente,

Como uma coisa certa que nos minta,

Como um grande desejo que nos mente.

Chove. Nada em mim sente...

 

1933

 

 

[Grandes mistérios]

 

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,

O limiar onde hesitam

Grandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver.

 

São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.

Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.

 

Então desperto do sonho

E sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;

Porque o limiar é medonho

E todo passo é uma cruz.

 

1933

 

 

[Dorme]

 

Dorme, que a vida é nada!

Dorme, que tudo é vão!

Se alguém achou a estrada,

Achou-a em confusão,

Com a alma enganada.

 

Não há lugar nem dia

Para quem quer achar,

Nem paz nem alegria

Para quem, por amar,

Em quem ama confia.

 

Melhor entre onde os ramos

Tecem dosséis sem ser

Ficar como ficamos,

Sem pensar nem querer.

Dando o que nunca damos.

 

1933

 

 

[Não sei que sonho me não descansa]

 

Não sei que sonho me não descansa

E me faz mal...

Mas eia! o harmônio a guiar a dança

Nesse quintal.

 

E eu perco o fio ao que não existe

E ouço dançar,

Já não alheio, nem sequer triste,

Só de escutar.

 

Quanta alegria onde os outros são

E dançam bem!

Dei-lhes de graça meu coração

E o que ele tem.

 

Na noite calma o harmónio toca

Aquela dança,

E o que em mim sonha um momento evoca

Nova esperança.

 

Nova esperança que há de cessar

Quando, já dia,

O harmônio eterno que há de acabar

Feche a alegria.

 

Ah, ser os outros! Se eu o pudesse

Sem outros ser!,

Enquanto o harmônio minha alma enchesse

De o não saber.

 

1933

 

 

[Fresta]

 

Em meus momentos escuros

Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quando a vida dá ou tem,

 

Se, um instante, erguendo a fronte

De onde em mim sou aterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,

 

Revivo, existo, conheço,

E, ainda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço.

Entrego-lhe o coração.

 

1934

 

 

[Onda]

 

Onda que, enrolada, tornas,

Pequena, ao mar que te trouxe

E ao recuar te transtornas

Como se o mar nada fosse,

 

Porque é que levas contigo

Só a tua cessação,

E, ao voltar ao mar antigo,

Não levas meu coração?

 

Há tanto tempo que o tenho

Que me pesa de o sentir.

Leva-o no som sem tamanho

Com que te ouço fugir!

 

1934

 

 

[Montes]

 

Montes, e a paz que há neles, pois são longe...

Paisagens, isto é, ninguém...

Tenho a alma feita para ser de um monge

Mas não me sinto bem.

 

Se eu fosse outro, fora outro. Assim

Aceito o que me dão,

Como quem espreita para um jardim

Onde os outros estão.

 

Que outros? Não sei. Há no sossego incerto

Uma paz que não há,

E eu fito sem o ler o livro aberto

Que nunca me dirá...

 

1934

 

 

[Neste mundo em que esquecemos]

 

Neste mundo em que esquecemos

Somos sombras de quem somos,

E os gestos reais que temos

No outro em que, almas, vivemos,

São aqui esgares e assomos.

 

Tudo é noturno e confuso

No que entre nós aqui há.

Projeções, fumo difuso

Do lume que brilha ocluso

Ao olhar que a vida dá.

 

Mas um ou outro, um momento.

Olhando bem, pode ver

Na sombra e seu movimento

Qual no outro mundo é o intento

Do gesto que o faz viver.

 

E então encontra o sentido

Do que aqui está a esgarçar,

E volve ao seu corpo ido,

Imaginado e entendido,

A intuição de um olhar.

 

Sombra do corpo saudosa,

Mentira que sente o laço

Que a liga à maravilhosa

Verdade que a lança, ansiosa,

No chão do tempo e do espaço.

 

1934

 

 

[Foi um momento]

 

Foi um momento

O em que pousaste

Sobre o meu braço,

Num movimento

Mais de cansaço

Que pensamento.

A tua mão

E a retiraste.

Senti ou não?

 

Não sei. Mas lembro

E sinto ainda

Qualquer memória

Fixa e corpórea

Onde pousaste

A mão que teve

Qualquer sentido

Incompreendido,

Mas tão de leve!...

 

Tudo isto é nada,

Mas numa estrada

Como é a vida

Há uma coisa

Incompreendida...

 

Sei eu se quando

A tua mão

Senti pousando

Sobre o meu braço,

E um pouco, um pouco,

No coração,

Não houve um ritmo

Novo no espaço?

 

Como se tu,

Sem o querer,

Em mim tocasses

Para dizer

Qualquer mistério,

Súbito e etéreo,

Que nem soubesses

Que tinha ser.

 

Assim a brisa

Nos ramos diz

Sem o saber

Uma imprecisa

Coisa feliz.

 

1934

 

 

[Cessa o teu canto!]

 

Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

 

Ouvi-te e ouvi-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas a cantar.

E a melodia

Que não havia,

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

 

Foi tua voz

Encantamento

Que, sem querer,

Nesse momento

Vago acordou

Um ser qualquer

Alheio a nós

Que nos falou?

 

Não sei. Não cantes!

Deixa-me ouvir

Qual o silêncio

Que há a seguir

A tu cantares!

 

Ah, nada, nada!

Só os pesares

De ter ouvido,

De ter querido

Ouvir para além

Do que é o sentido

Que uma voz tem.

 

Que anjo, ao ergueres

A tua voz

Sem o saberes

Veio baixar

Sobre esta terra

Onde a alma erra

E com as asas

Soprou as brasas

De ignoto lar?

 

Não cantes mais!

Quero o silêncio

Para dormir

Qualquer memória

Da voz ouvida,

Desentendida,

Que foi perdida

Por eu a ouvir...

 

1934

 

 

[Eros e Psique]

 

... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

 

Do ritual do grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

 

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada

 

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

 

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

 

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

 

Mas cada um cumpre o Destino —

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

 

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

 

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

 

1934 (ou anterior)

 

 

[Houve um ritmo no meu sono]

 

Houve um ritmo no meu sono,

Quando acordei o perdi.

Porque saí do abandono

De mim mesmo, em que vivi?

 

Não sei que era o que não era.

Sei que suave me embalou,

Como se o embalar quisera

Tornar-me outra vez quem sou.

 

Houve uma música finda

Quando acordei de a sonhar.

Mas não morreu: dura ainda

No que me faz não pensar.

 

1934

 

 

[Quando o sol o doura]

 

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

O doura falsamente de vermelho,

O mar é áspero [?], casual [?] ou mo(le),

É uma vez abismo e outra espelho.

Evoco porque sinto velho

O que em mim quereria mais que o mar

Já que nada ali há por desvendar.

 

Os grandes capitães e os marinheiros

Com que fizeram a navegação,

Jazem longínquos, lúgubres parceiros

Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar, às vezes, quando são

Grandes as ondas e é deveras mar

Parece incertamente recordar.

 

Mas sonho... O mar é água, é agua nua,

Serva do obscuro ímpeto distante

Que, como a poesia, vem da lua

Que uma vez o abate outra o levanta.

Mas, por mais que descante

Sobre a ignorância natural do mar,

Pressinto-o, vazante, a murmurar.

 

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece

Que alma há nas coisas que parecem mortas.

Quanto em terra ou em nada nunca esquece.

Quem sabe se no espaço vácuo há portas?

Ó sonho que me exortas

A meditar assim a voz do mar,

Ensina-me a saber-te meditar.

 

Capitães, contramestres — todos nautas

Da descoberta infiel de cada dia ó

Acaso vos chamou de ignotas flautas

A vaga e impossível melodia.

Acaso o vosso ouvido ouvia

Qualquer coisa do mar sem ser o mar

Sereias só de ouvir e não de achar?

 

Quem atrás de intérminos oceanos

Vos chamou à distância como [?] quem

Sabe que há nos corações humanos

Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais subtil também,

Uma coisa que quer o som do mar

E o estar longe de tudo e não parar.

 

Se assim é, e se vós e o mar imenso

Sois qualquer coisa, vós por o sentir

E o mar por o ser, disto que penso;

Se no fundo ignorado do existir

Há mais alma que a que pode vir

À tona vã de nós, como à do mar,

Fazei-me livre, enfim, de o ignorar.

 

Dai-me uma alma transposta de argonauta,

Fazei que eu tenha, como o capitão

Ou o contramestre, ouvidos para a flauta

Que chama ao longe o nosso coração,

Fazei-me ouvir, como a um perdão,

Numa reminiscência de ensinar,

O antigo português que fala o mar!

 

1935

 

 

[Começa a ir ser dia]

 

Começa a ir ser dia,

O céu negro começa,

Numa menor negrura

Da sua noite escura,

A ter uma cor fria

Onde a negrura cessa.

 

Um negro azul-cinzento

Emerge vagamente

De onde o oriente dorme

Seu tardo sono informe,

E há um frio sem vento

Que se ouve e mal se sente.

 

Meu eu, o mal dormido,

Não sinto noite ou frio,

Nem sinto vir o dia

Da solidão vazia.

Só sinto o indefinido

Do coração vazio.

 

Em vão o dia chega

A quem não dorme, a quem

Não tem que ter razão

Dentro do coração,

Que quando vive nega

E quando ama não tem.

 

Em vão, em vão, e o céu

Azula-se de verde

Acinzentadamente.

Que é que a minha alma sente?

Nem isto, não, nem eu,

Na noite que se perde.

 

1935

 

 

[A Outra]

 

Amamos sempre no que temos

O que não temos quando amamos.

O barco para, largo os remos

E, um a outro, as mãos nos damos.

A quem dou as mãos?

À Outra.

 

Teus beijos são de mel de boca,

São os que sempre pensei dar,

E agora a minha boca toca

A boca que eu sonhei beijar.

De quem é a boca?

Da Outra.

 

Os remos já caíram na água,

O barco fez o que a água quer.

Meus braços vingam minha mágoa

No abraço que enfim podem ter.

Quem abraço?

A Outra.

 

Bem sei, és bela, és quem desejei...

Não deixe a vida que eu deseje

Mais que o que pode ser teu beijo

O poder ser eu que te beije.

Beijo, e em quem penso?

Na Outra.

 

Os remos vão perdidos já,

O barco vai não sei para onde.

Que fresco o teu sorriso está,

Ah, meu amor, e o que ele esconde!

Que é do sorriso

Da Outra?

 

Ah, talvez mortos ambos nós,

Num outro rio sem lugar

Em outro barco outra vez sós

Possamos nós recomeçar.

Que talvez sejas

A Outra.

 

Mas não, nem onde essa paisagem

É sob eterna luz eterna

Te acharei mais que alguém na viagem

Que amei com ansiedade terna

Por ser parecida

Com a Outra.

 

Ah, por ora, idos remo e rumo,

Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.

Façamos desta hora um resumo

Do que não poderemos ter.

Nesta hora, a única,

Sê a Outra.

 

1935

 

 

[Não me digas mais nada]

 

Não me digas mais nada. O resto é a vida.

Sob onde a uva está amadurecida

Moram meus sonos, que não querem nada.

Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.

 

Sob os ramos que falam com o vento,

Inerte, abdico do meu pensamento.

Tenho esta hora e o ócio que está nela.

Levem o mundo: deixem-me o momento!

 

Se vens, esguia e bela, deitar vinho

Em meu copo vazio, eu, mesquinho

Ante o que sonho, morto te agradeço

Que não sou para mim mais que um vizinho.

 

Quando a jarra que trazes aparece

Sobre meu ombro e sua curva desce

A deitar vinho, sonho-te, e, sem ver-te,

Por teu braço teu corpo me apetece.

 

Não digas nada que tu creias. Fala

Como a cigarra canta. Nada iguala

O ser um som pequeno entre os rumores

Com que este mundo [?].

 

A vida é terra e o vivê-la é lodo.

Tudo é maneira, diferença ou modo.

Em tudo quanto faças sê só tu,

Em tudo quanto faças sê tu todo.

 

1935

 

 

[Teus olhos entristecem]

 

Teus olhos entristecem

Nem ouves o que digo.

Dormem, sonham esquecem...

Não me ouves, e prossigo.

 

Digo o que já, de triste,

Te disse tanta vez...

Creio que nunca o ouviste

De tão tua que és.

 

Olhas-me de repente

De um distante impreciso

Com um olhar ausente.

Começas um sorriso.

 

Continuo a falar.

Continuas ouvindo

O que estás a pensar,

Já quase não sorrindo.

 

Até que neste ocioso

Sumir da tarde fútil,

Se esfolha silencioso

O teu sorriso inútil.

 

1935

 

 

[Há doenças piores que as doenças]

 

Há doenças piores que as doenças,

Há dores que não doem, nem na alma

Mas que são dolorosas mais que as outras.

Há angústias sonhadas mais reais

Que as que a vida nos traz, há sensações

Sentidas só com imaginá-las

Que são mais nossas do que a própria vida.

Há tanta coisa que, sem existir,

Existe, existe demoradamente,

E demoradamente é nossa e nós...

Por sobre o verde turvo do amplo rio

Os circunflexos brancos das gaivotas...

Por sobre a alma o adejar inútil

Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

 

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

 

1935

 

 

[No ouro sem fim da tarde morta]

 

No ouro sem fim da tarde morta,

Na poeira de ouro sem lugar

Da tarde que me passa à porta

Para não parar,

 

No silêncio dourado ainda

Dos arvoredos verde fim,

Recordo. Eras antiga e linda

E estás em mim...

 

Tua memória há sem que houvesses,

Teu gesto, sem que fosses alguém,

Como uma brisa me estremeces

E eu choro um bem...

 

Perdi-te. Não te tive. A hora

É suave para a minha dor.

Deixa meu ser que rememora

Sentir o amor,

 

Ainda que amar seja um receio,

Uma lembrança falsa e vã,

E a noite deste vago anseio

Não tenha manhã.

 

1935 (?)

 

 

[Sonhos, sistemas, mitos, ideias...]

 

Sonhos, sistemas, mitos, ideias...

Fito a água insistente contra o cais,

E, como flocos de um papel rasgado,

A ela dando-me como a um justo fado,

Sigo-os com os olhos em que não há mais

Que um vão desassossego resignado.

 

Eles a mim como consolarão –

A mim que de inquieto já nem choro;

Que na erma mente e no ermo coração

Sombras, só sombras, sombra, rememoro;

A mim, em tudo, sempre, em vão.

Cansado até dos deuses que não são?

 

1935 (?)

 

 

[Na quinta entre ciprestes]

 

Na quinta entre ciprestes

Secaram todas as fontes,

As rosas brancas agrestes

Trazidas do fim dos montes

Vós mas tirastes, que as destes...

 

No rio ao pé de salgueiros

Passaram as águas em vão,

Com tristezas de estrangeiros

Passaram pelos salgueiros

As ondas, sem ter razão.

 

1935 (?)

 

 

[Dizem?]

 

Dizem?

Esquecem.

Não dizem?

Disseram.

 

Fazem?

Fatal.

Não fazem?

Igual.

 

Por quê

Esperar?

— Tudo é

Sonhar.

 

1935 (?)

 

 

[Conselho]

 

Cerca de grandes muros quem te sonhas.

Depois, onde é visível o jardim

Através do portão de grade dada,

Põe quantas flores são as mais risonhas,

Para que te conheçam só assim.

Onde ninguém o vir não ponhas nada.

 

Faze canteiros como os que outros têm,

Onde os olhares possam entrever

O teu jardim como lhe vais mostrar.

Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém

Deixa as flores que vêm do chão crescer

E deixa as ervas naturais medrar.

 

Faze de ti um duplo ser guardado;

E que ninguém, que veja e fite, possa

Saber mais que um jardim de quem tu és —

Um jardim ostensivo e reservado,

Por trás do qual a flor nativa roça

A erva tão pobre que nem tu a vês...

 

1935 (?)

 

 

[Liberdade]

 

(Falta uma citação de Sêneca)

 

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

O sol doira

Sem literatura.

 

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa...

 

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

 

Quanto é melhor, quanto há bruma,

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

 

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

 

O mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

 

1935

 

 

[Poema]

 

O céu, azul de luz quieta,

As ondas brandas a quebrar,

Na praia lúcida e completa –

Pontos de dedos a brincar.

 

No piano anónimo da praia

Tocam nenhuma melodia

De cujo ritmo por fim saia

Todo o sentido deste dia.

 

Que bom, se isto satisfizesse!

Que certo, se eu pudesse crer

Que esse mar e essas ondas e esse

Céu têm vida e têm ser.

 

1935 (?)

 

 

[Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento]

 

A criança loura

Jaz no meio da rua,

Tem as tripas de fora

E por uma corda sua

Um comboio que ignora.

 

A cara está um feixe

De sangue e de nada.

Luz um pequeno peixe

— Dos que boiam nas banheiras —

À beira da estrada.

 

Cai sobre a estrada o escuro.

Longe, ainda uma luz doura

A criação do futuro...

 

E o da criança loura?

 

1929 (ou anterior)

 

 

[No túmulo de Christian Rosencreutz]

 

Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto..., e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a ouro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro...