Carlota Ângela

Carlota Ângela
Camilo Castelo Branco
Projecto Adamastor
Ficha Técnica
Título: Carlota Ângela
Autor: Camilo Castelo Branco
Data Original de Publicação: 1858
Data de Publicação do eBook: 2018
Capa: Ana Ferreira
Imagem da Capa: Only a Lock of Hair, de John Everett Millais (fotografia de Miriam Santos Freire)
Revisão: Cláudia Amorim e Ricardo Lourenço
ISBN: 978-989-8698-28-5
Texto-Fonte: Carlota Ângela. Porto: Cruz Coutinho, 1874.
O Projecto Adamastor não adopta o Acordo Ortográfico de 1990 nas suas edições.

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Índice
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
Conclusão
I
Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna
precipitá-la num incêndio?
Shakespeare (Como vós o amais)
Cette douce ivresse de l’âme devait être troublée.
Balzac (Albert Savarus)
Norberto de Meireles e sua mulher D. Rosália Sampaio, ricos proprietários, moradores, em 1806, na Rua das Taipas, da cidade do Porto, viam crescer prodigiosamente os seus cabedais, e, com eles, uma filha única, tão encantadora para os pais como a riqueza com que a iam enfeitando para seduzir o mais medrado capitalista da terra.
Tolerem-me a singeleza com que se começa a narrativa.
Eu tinha à minha disposição quatro exórdios bonitos, que escrevi em quatro tiras, e rejeitei com desdém.
Era assim o primeiro:
«Diz-me tu, amor, que magos filtros insinuaste no coração da virgem de olhos negros, que leda e melancólica, lagrimosa e risonha, te está enamorando na lua, donde lhe sorris em noites calmas de Estio, na floresta, onde lhe cicias palavras nunca ouvidas, na fonte, onde lhe murmuras a tua linguagem do céu? Que ambrósia inebriante deste à doudinha que, tão requestada e alheada de brinquedos pueris, se vai, só e destemida, a buscar-te, por entre mirtos e rosais, perseguindo-te como lasciva borboleta de flor em flor, sobre alfombras de verdura, por onde volitam lúcidos falenos?»
Segundo exórdio:
«À viração da tarde tremulava ligeiramente a folhagem do renque de álamos que cintavam uma pitoresca vivenda do Candal. Um repuxo de cristalina linfa trepidava na cascata com soidoso rumor, donosa música, ao som da qual se espertam amores em peito virgem, e adormecem mágoas em coração atribulado. Morbidamente recostada sobre um banco de cortiça, por onde trepava um jasmineiro em flor, via-se, como engolfada em alegrias íntimas das que o rosto esconde ao invejar de estranhos, uma graciosíssima donzela... etc.»
Terceiro:
«Onde vai este gentil mancebo, tão à pressa e ofegante pela calada da noite, subindo a colina do Candal, em cujo topo alveja uma casa, onde ele parece mandar adiante o coração em cada suspiro que o cansaço lhe tira do peito arquejante? Que visão alvíssima, que fada ou silfo é esse que desliza, rápido e volátil, por entre os álamos, e vem ao peitoril do muro, como a ansiada Hero, restaurar o vigor do extenuado Leandro?... etc.»
Quarto, e último exórdio:
«Vou contar-vos uma história que verifiquei nas fiéis narrações de mais de vinte pessoas vivas. Ides ver até que ponto os pais podem infelicitar os filhos; até que ponto a missão augusta do segundo criador pode ser fementida e insidiosa; até que ponto o amor paternal é amor, e donde começa a ser desumanidade. Se alguma confiança devo ter na justiça congenial do coração humano, espero carear graça e indulgência para uma filha que se rebela primeiro contra um pai, depois contra o falso deus que lhe impuseram como verdugo de mais alta e temerosa categoria, árbitro e claviculário das sempiternas moradas do Inferno... etc.»
Aí está o que eu tinha escrito. Tudo rejeitei, contra a opinião de um congresso de homens de delicado gosto, que votaram por qualquer dos quatro prelúdios, chasqueando-me a simpleza com que escrevi o quinto, acanhado e peco como historieta sem nervo, nem imaginação.
E, portanto, desde já me desquito com os leitores se no decurso deste romance me apodarem de insulso e desimaginoso.
VERDADE, NATURALIDADE, E FIDELIDADE
é a minha divisa, e sê-lo-á enquanto este globo se não reconstruir à feição do disparate com que uns o alindam e outros o desfeiam.
Quem desde já sentir azias de boca, deixe isto, e desenfastie-se com as conservas irritantes da França, e até das nacionais, que também as temos, curtidas em vasilhas francesas. Embora travem à ervilhaca, é o que temos, e o que nos dão os Watteis dos fricassés literários, em menoscabo do clássico cozinhado de Domingos Rodrigues.
Atemos o fio, e a graça de Deus nos assista, para que a benevolência do leitor se compraza com o alinho desafectado e lhano deste conto.
A filha única de Norberto de Meireles e D. Rosália Sampaio chamava-se Carlota Ângela, e tinha dezessete anos, em 1806.
Não era formosa; mas esquisitamente engraçada sim.
Norberto, filho de lavradores transmontanos, era campesino, rústico, e desajeitado; Rosália, conquanto procedente de progénie já cidadã desde seu avô, havia muito ainda que desbastar, e quatro gerações não tinham adelgaçado nada a raça originária de Covas de Barroso.
Ora, a vergôntea de troncos ou cepos tais não podia sair de compleição tão fina e delicada, como se usa liberalmente com as heroínas dos romances.
As feições de Carlota eram secas e trigueiras; mas a magreza não era de debilidade ou doença. O ligeiro toque de escarlate nas faces era a transparência de sangue rico de toda a seiva dos dezessete anos. Tinha uma bonita fronte, e abundantes cabelos pretos, que ela enfeitava sem esmero, mas com desalinhada graça, conservando-os, até essa idade, em três tranças, que um laço de cetim encarnado prendia na cintura em duas roscas. À custa de importantes admoestações da mãe, Carlota reformou o penteado, em conformidade com a moda, que era enastrar trancinhas de cabelos em dois grandes corações que ladeavam a cabeça, desde o vértice até às orelhas, com matiz de lacinhos de várias cores: bonita cousa, antes da restauração das troixas contemporâneas, restauração, digo, porque as malas, no cocuruto da cabeça, começavam a decair do gosto em 1806.
O que fazia engraçadíssima Carlota eram as espessas sobrancelhas, que formavam apenas um crescente das duas arcadas ciliares: tão imperceptível era a cisura que as estremava na base do nariz. Bem sabem que olhos costumam ser os que reinam sob tão magnífico dossel: grandes, e negros, entre longas pestanas que, ao mais ligeiro languir das pálpebras, se ajustavam num amortecer de tanta volúpia, que mais não podia ser, sem feitiçaria!
Ainda não sei descrever narizes, e por narizes comecei a pintar. O de Carlota era irregular, talvez, ao contrário dos narizes de passaporte: era um nariz adunco, longo de mais para aquele rosto; mas esta incongruência, impressionando aos que a viam pela primeira vez, à segunda, não havia que desdenhar-lhe. Singular e desusada era a boca. Cada comissura ou canto dos lábios terminava em dois vincos, um subindo, outro descendo, mas tão pronunciados, que pareciam um permanente riso sardónico, um não sei quê que fazia desconfiar as pessoas menos habituadas à sua convivência.
Carlota era alta e gentil. Não se afectava para ser garbosa, que lhe sobejava graça e donaire nos naturais meneios. O braço era incorrecto, fornido de mais em carnes, e de pele trigueira; a mão longa e magra; e o pé proporcional à corpulenta haste.
Já agora, diga-se o porquê do cuidadoso recato em que a filha do Sr. Norberto de Meireles tinha os braços; não era a grossura do pulso, nem a pujança carnosa do antebraço; era uma espessa camada de buço, lanugem, ou cabelo, que a frenética menina cerceava desde os quatorze anos, à tesoura, porque as amigas e parentas a aperreavam, chamando-lhe «peluda».
Basta de matéria: fica-se sabendo que não se trata de uma mulher formosa; deram-se, porém, os traços principais de Carlota, e são esses os que, na maioria dos casos, fascinam, apaixonam e enlouquecem o homem de trinta anos, gasto de queimar incenso às belezas correctas, a cuja desanimação de comum acordo se chama «lindeza».
Vejamo-la espiritualmente.
Carlota Ângela foi criada com descuidado mimo. Seus pais reviam-se nela, desculpavam-lhe todas as perrices, e fá-la-iam incorrigível, se a natureza se não corrigisse a si própria.
Aos quinze anos, a folgazã menina mudou para triste; de gárrula e traquina que era, fez-se taciturna e indolente. Maneiras de senhora, conversações com pessoas de idade, onde estavam moças; entremeter-se em cousas domésticas, a que a não chamavam; desligar-se das companheiras do colégio, desdenhando a frivolidade de seus passatempos: tal foi a reforma repentina de Carlota Ângela.
Alegravam-se os pais, felicitando-se por a não terem contrariado em pequena, contra as admoestações dos parentes, entre os quais havia um tio materno, de cuja calva ela mudava o chinó para a cabeça de um gato maltês, ou em cujos óculos ela bafejava para lhos embaciar. Esta vítima, no auge da sua angústia prognosticara aos pais de Carlota grandes dissabores, consequências funestas da liberdade que davam à condição ferina da moça.
Depois da mudança inesperada, Norberto e Rosália, todos os dias, diziam ao homem dos óculos:
— Vê como se enganou? Aí a tem agora mais ajuizada e mansa que as meninas criadas debaixo da disciplina e da palmatória...
— Veremos... — redarguiu o velho advogado — veremos quando ela tiver uma vontade oposta à vossa qual das duas é a que vence.
— Vontade oposta à nossa! — replicava Norberto. — Isso havia de ter que ver! Como acha o mano que ela se possa opor à nossa vontade?
— Facilmente; e para não ir mais longe, ides vós ter uma ocasião de a experimentar.
— Qual? — atalharam ambos.
— Eu vos digo; mas, se Carlota entrar enquanto eu falo dela, fica para amanhã o que hoje vos não disser.
— Carlota está no seu quarto a ler, e não vem cá tão cedo — disse Rosália. — Podes falar à vontade, Joaquim.
— Quando me notastes a mudança rápida de Carlota, fiquei mais admirado que vós. Entrei a cismar até que ponto se podia aceitar a naturalidade da transfiguração moral, e vim a suspeitar que a causa estava na natureza, mas fora da natureza de Carlota.
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