Ora, eu sei mais do mundo que vós, haveis de conceder-me isto, e vós tendes mais boa-fé que eu: fica uma cousa pela outra, e acho que a vossa é bem mais agradável à vida que a minha.
Sabeis o que me lembrou? Se Carlota estaria namorada.
— Olha que lembrança! — atalhou D. Rosália.
— Essa é das suas, doutor! — disse Norberto. — Está a sonhar... deixe-se disso.
— Seria sonho — disse o doutor severamente —; mas já agora deixem-me contar o sonho até ao fim, e guardem para o remate as admirações. Nesta suspeita, comecei a limpar os óculos para examinar as caras masculinas que entravam aqui, e não achei alguma duvidosa. As vossas relações são pouquíssimas, e nessas não há alguém que possa despertar no coração de Carlota um sentimento novo. Continuei as minhas averiguações fora de casa. Fui às poucas casas onde vós íeis; segui todos os olhares de Carlota, e achei-os sempre indistintos e indiferentes. Descorçoei um pouco; mas não desisti.
Um dia do ano passado, estávamos nós no Candal, e passeava eu e ela sozinhos na estrada. Dizia-me a pequena que tinha lido umas novelas de cavalarias, de que gostara muito, posto que não acreditasse nas histórias. Contou-me algumas passagens de Paulo e Virgínia e de Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos, que vós não sabeis o que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram livros de boa moral. Notei que a moça, quando me falava no amor das damas e cavaleiros, empregava mais vivacidade do que convinha a uma menina inocente de sentimentos amorosos. Fiz-lhe algumas perguntas com intenção de a surpreender; mas ela jogava comigo tão habilmente, que venceria a partida, se eu não tivesse cinquenta e cinco anos, e não tirasse da hábil escápula o mesmo que tiraria, se ela se deixasse apanhar.
Noutro dia estávamos nós sentados no mirante, conversando em cousas que me não lembram, e vimos aparecer no alto da estrada um cavaleiro. Olhei casualmente para Carlota, e vi-a corada, e inquieta. Disfarcei o reparo, e vi-a erguer-se e voltar as costas para o cavaleiro, dando alguns passos com certo ar de indiferença, e tornou logo, girando entre os dedos uma flor que cortara.
O cavaleiro passou e cortejou-me: era meu conhecido. Esperei que ela me perguntasse quem era; nem uma palavra. Perguntei se o conhecia, ergueu os ombros, e fez com os beiços um gesto, que parecia dizer: «não sei, nem me importa saber.»
Noutro dia, fui eu ao Candal, e no alto das Regadas ouvi tropel de cavalo, que me seguia, subindo a calçada. Escondi-me na esquina de uma travessa, e vi passar o cavaleiro: era o mesmo da cortesia. Fui-o seguindo de longe; e, ao chegar à colina donde se avista o mirante, vi, primeiro, Carlota debruçada sobre o parapeito da varanda, e, depois, o cavaleiro parado debaixo do mirante.
— Credo! — exclamou D. Rosália, erguendo-se branca como cera.
— E esteve até agora calado com isso! — disse Norberto, erguendo-se também.
— Nada de espantos! — respondeu o bacharel, sem se descompor na cadeira, onde se refestelava, falando com a sua costumada solenidade oratória. — Logo se diz quem é o homem; mas há-de aqui fazer-se o que eu aconselhar, senão desconfio muito que minha irmã experimente mais cedo do que espera a vontade de Carlota.
Escondi-me alguns segundos, e apareci no momento em que vossa filha entregava um ramo ao cavaleiro.
Ela deu fé de mim, e sumiu-se; e ele seguiu a estrada, depois que me viu. Carlota recebeu-me com a certeza de que eu era suficientemente cego para a não ter visto: não deu o menor indício de susto. Convidei-a, como sempre, a passear no jardim, e disse-lhe: «Quando houver alguma novidade na tua vida, hás-de contar-ma, menina. Se ela te parecer tão agradável, que a queiras só para ti, não cuides que lhe diminuis o valor, dizendo-ma. O coração de teu tio há-de sentir o bem do que for bom para o teu. Ora, conversemos: diz-me lá, Carlota, se sentes alguma inclinação que não sentias há um ano, quando os meus óculos e o meu chinó eram o teu regalo.
— Eu não, meu tio... sinto o que sentia — respondeu ela; mas a inocência protestou contra a mentira, mostrando-se no rosto: corou e gaguejou de um modo que me fez pena e contentamento. Quando assim se cora, o coração está puro.
Para acudir à vossa impaciência, dir-vos-ei, em resumo, que obriguei suavemente Carlota a confessar-me que amava Francisco Salter de Mendonça.
Já sabeis quem é.
— Eu não! — disse D. Rosália. E voltando-se para o marido: — E tu?
— Conheço de vista — respondeu Norberto —, é um militar, creio eu...
— Francisco Salter de Mendonça — continuou o doutor Joaquim António de Sampaio, sorvendo uma pitada pela venta direita, e comprimindo a outra com o dedo indicador da mão esquerda — é um tenente da brigada real de marinha, é natural de Lisboa, e está aqui há dois anos a bordo do brigue Audaz.
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