pouco tempo depois que perjurou, Carlota. Agora crês que há Deus?... crês na justiça divina?
Carlota não ouvia. Os olhos pasmaram, como se a paralisia os ferisse de súbito. Os lábios ficaram semiabertos, como se por eles perpassasse a derradeira expiração. Os braços decaíram com mortal quebranto.
A freira abraçara-a, sustendo a cruz entre os dois seios, e invocando Jesus, e Carlota.
Doroteia entrara, ouvindo os gritos de Rufina. Subira ao leito, clamando agudos ais, porque julgara morta Carlota.
— Vá ver se está algum médico dentro — disse Rufina. — Mandem-no chamar, a toda a pressa, se não estiver. Chamem também o capelão... Parece-me que a matei, cuidando que a salvava.
Doroteia saíra, levando o alvoroço e o terror, pelos dormitórios, onde ecoavam os seus altos gemidos. Soror Rufina, desalentada, enfraquecida de espírito, e de fé, como aqueles santos de quem o Senhor se queixou, disse, lavada em lágrimas:
— Meu Deus! são terríveis os vossos juízos, e terríveis as vossas intenções! Quando a inocência assim padece, como castigareis o crime?
Fora como o morder da víbora entranhada o pungir de alma que vibrou em dolorosíssimo tremor o corpo todo da religiosa. Era a consciência, que recebia em si o fel da injúria que os lábios cuspiram; mas não passara deles. A apavorada freira, lívida como o sacrílego aterrado pelo remorso, ouviu um murmúrio, que lhe recrudesceu o pavor. Era Carlota que lhe dizia:
— Oremos pela alma do infeliz.
Correu ao leito, correram as religiosas que entraram com Doroteia. Viram Carlota Ângela com as mãos erguidas, e a face coberta de lágrimas. Ergueram também as mãos, choraram também, ajoelharam, vendo Rufina de joelhos.
— É um Padre-Nosso e uma Ave-Maria por alma de Francisco — balbuciou Carlota, soluçando, com inexprimível aflição.
O médico entrava nesse conflito, e presenciando as lágrimas de Carlota, fez um gesto afirmativo. Doroteia interrogou-o com ansiado olhar. O médico, entreabrindo ligeiramente os lábios com um sorriso, queria dizer:
— Está salva.
IX
Mon Dieu! comme il est difficile
De courre avec de l’argent!
Théophile de Veau
Trocando com vontade pouco experta,
Por incerta fortuna esta mais certa.
C. Pereira de Castro (Lisboa Edificada)
Francisco Salter de Mendonça, de Lisboa ao Rio de Janeiro escrevera um diário, em que mais se acusava a si de ingrato que aos seus cavilosos protectores de cruéis. A saudade era encruada pelo arrependimento.
Ao passo que o horizonte da pátria se perdia nas orlas do mar, o atribulado mancebo já não sentia da esperança o conforto que o alentava no instante da partida. Afigurava-se-lhe um sonho horroroso estar ele tão longe, cada vez mais longe, de Carlota Ângela. Ideava e desfiava todas as consequências que podia trazer a sua formal rejeição do encargo e da patente.
«Se me prendessem — escrevera ele no diário —, que maior prova podia eu dar a Carlota de que a minha liberdade, longe dela, seria o meu supremo cativeiro?
«Preso debaixo do céu em que ela vive, teria a liberdade de escrever-lhe, de animá-la, de a ver talvez um dia chegar lacrimosa aos ferros do meu cárcere, e encher-mo de quantas alegrias podem elevar uma alma nobre sobre astúcias de miseráveis tiranos.
«Seria grande mágoa para ela a minha prisão, a minha baixa, a minha queda irremediável no princípio da vida? Oh! decerto era; mas essa dor desvanecê-la-ia a convicção de ser tão amada, tão preterida à glória, à honra e aos sorrisos da fortuna!
«Por que não lhe dei eu o nobre orgulho de me sacrificar, de me abater aos olhos de todo o mundo, contanto que me engrandecesse aos olhos dela, dela, para quem eu queria honras, glórias, coroas, mundos, tudo grande, tudo sublime, e tudo pequeno em confronto do coração que lhe dei?!
«E, depois, a minha prisão seria de pouco tempo, porque os meus parentes são poderosos, e o dinheiro do pai de Carlota exaurir-se-ia ao mesmo tempo que o coração de sua filha seria mil vezes multiplicado em apego, em gratidão, em ternura, e coragem para afrontar comigo os obstáculos.
«Mas nem talvez eu chegasse a ser preso. Julgar-me-ia o governo em demasia castigado com a baixa, com a desconsideração e com o desprezo. Toda a gente me olharia como se olha um homem pobre, e de mais a mais rebelde ao serviço da pátria. Que importava isso? Carlota Ângela seria o meu talismã; as riquezas brotariam de seu coração inesgotável; todos me invejariam ao pé dela; apontar-nos-iam como modelos de afeição, e de honra na afeição, que tão rara se encontra. Com o tempo, eu seria chamado a merecer o prémio de calcar a intriga, e o nosso pão na opulência não seria mais doce que o pão da pobreza.
«Que fiz eu, homem vil, homem sem alma?
«Mascarei-me com as palavras “honra e dever”, e estou desonrado perante Carlota! Impus-lhe um juramento de morrer minha escrava, fiz que ela me adjudicasse a sua vida, apontei-lhe o claustro como seu eterno cárcere, e não tive valor para me deixar perseguir por amor dela!
«Ó coração duro, que assim te desonraste com tão baixo egoísmo!
«Tu choravas, quando lhe escreveste um adeus, mas essas lágrimas pôde enxugá-las a razão, tão vilã como tu! Mentias nesse pranto, abjecto, avarento, que te sentiste sobressaltado de orgulho e alegria, quando as dragonas de major da armada te deslumbraram a duas mil léguas distantes de Carlota.
«Não sou digno de mais a ver, sem corar de vergonha, não! Se ela me não escrever, se rasgar e pisar e cuspir as minhas cartas, eu devo ter o cinismo de tragar a afronta, já que tive a vilania de a merecer.»
A estas páginas da consciência oprimida, sucediam-se outras de lagrimosa ternura. Nunca a saudade se exprimira com mais contrição de alma, com mais doridos afagos à imagem querida que os recebe chorosa, com devaneios de mais poesia amarga, dessa que só sabem desentranhar do coração os que sentem voluptuosa dor em despedaçá-lo.
Francisco Salter atravessara o Atlântico sem um amigo, sem um ouvido atento onde contasse, com atrição de penitente, as saudades e pungimentos que o laceravam.
Eram belas as noites, era de magia o céu estrelado, as luas-cheias no mar parece que recolhem de mais perto, naquela vasta solidão, as confidências do amante, dando-se como espelho, para que, a milhares de léguas, a contemplativa amada veja nela os olhos do que a pranteia.
Mendonça, porém, angustiava-se mais com esse espectáculo, só donoso de êxtase, e dulcíssimo de espirituais colóquios para amantes felizes.
E escreveu assim:
«O desgraçado não suporta as alegrias dos homens, nem as da natureza. Se a sua alma está de luto, cubra-se de negro tudo que o cerca. Se sulca os mares, refervam as vagas batidas pelo látego da tormenta; forre-se de nuvens torvas o céu, reboem em turbilhões, prenhes de coriscos; rua o último mastro lascado pelo raio, e espumem contra a derradeira tábua do naufragado as fauces do dragão que abre um abismo em cada resfôlego.
«O amanhecer não tem cantares, nem a tarde murmúrios, nem a solidão arroubamentos para esse que a natureza repeliu de si, como leproso, chagado no coração, contagioso de pestilencial desesperança.
«Eu subi há pouco à tolda, e vi a Lua, que oito dias antes me vira no Candal, ao pé de Carlota. Não pude fitá-la.
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