Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e

 

por este contato voluptuoso, esqueci-me, a ponto que, sem sa-

 

ber o que fazia, inclinei a cabeça e colei os meus lábios arden-

 

tes nesse ombro, que estremecia de emoção.

 

Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como

 

susto causado pelos solavancos do ônibus, e refugiou-se no

 

canto.

 

Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para

 

olhar pela portinhola do carro, e, aproximando-me dela, disse-

 

-lhe quase ao ouvido :

 

-- Perdão!

 

Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.

 

Tomei uma resolução heróica.

 

-- Vou descer, não a incomodarei mais.

 

Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela ou-

 

visse, inclinei-me para mandar parar.

 

Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava doce-

 

mente a minha, como para impedir-me de sair.

 

Está entendido que não resisti e que me deixei ficar ; ela

 

conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-me abandonado

 

a mão, que eu beijava respeitosamente.

 

De repente veio-me uma idéia. Se fosse feia! se fosse

 

velha! se fosse uma e outra coisa!

 

Fiquei frio e comecei a refletir.

 

Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só

 

se permite ao homem que se ama, não podia deixar com

 

efeito de ser feia e muito feia.

 

Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos

 

agarrava-se a este, que de noite e às cegas lhe proporcionara

 

o acaso.

 

É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveluda-

 

da... Ilusão! Era a disposição em que eu estava!

 

A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.

 

Nesta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha

 

chegado a uma convicção inabalável sobre a fealdade de minha

 

vizinha.

 

Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a

 

princípio: porém, ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem

 

envolvida no seu mantelete e no seu véu, que nem um traço do

 

rosto traía o seu incógnito.

 

Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar

 

e não se esconde como uma pérola dentro da sua ostra.

 

Decididamente era feia, enormemente feia!

 

Nisto ela fez um movimento, entreabrindo o seu mantele-

 

te, e um bafejo suave de aroma de sândalo exalou-se.

 

Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se

 

infiltrou em minha alma como um eflúvio celeste.

 

Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito

 

dos perfumes.

 

A mulher é uma ílor que se estuda, como a flor do campo,

 

pelas suas cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu per-

 

fume.

 

Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu

 

modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir com

 

a mesma exatidão de um problema algébrico se ela é bonita

 

ou feia.

 

De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume;

 

e isto por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da

 

criação, que não sei explicar.

 

Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao

 

heliotrópio, à violeta, ao jasmim, e não a essas flores sem

 

graça e sem beleza, que só servem para realçar as suas irmãs?

 

É decerto por esta mesma razão que Deus só dá à mulher

 

linda esse tato delicado e sutil, esse gosto apurado, que sabe

 

distinguir o aroma mais perfeito...

 

Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para

 

mim como uma revelação.

 

Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe

 

compreender toda a poesia desse perfume oriental, desse hat-

 

chiss do olfato, que nos embala nos sonhos brilhantes das Mil

 

e uma Noites, que nos fala da Índia, da China, da Pérsia,

 

dos esplendores da Ásia e dos mistérios do berço do sol.

 

O sândalo é o perfume das odaliscas de Stambul e das hu

 

ris do profeta; como as borboletas que se alimentam de mel,

 

a mulher do Oriente vive com as gotas dessa essência divina.

 

Seu berço é de sândalo ; seus colares, suas pulseiras, o seu

 

leque, são de sândalo; e, quando a morte vem quebrar o fio

 

dessa existência feliz, é ainda em uma urna de sândalo que o

 

amor guarda as suas cinzas queridas.

 

Tudo isto me passou pelo pensamento como um sonho, en-

 

quanto eu aspirava ardentemente essa exalação fascinadora,

 

que foi a pouco e pouco desvanecendo-se.

 

Era bela!

 

Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profun-

 

da e inabalável.