Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma
elevada, se fosse feia, não dava sua mão a beijar a um homem
que podia repeli-la quando a conhecesse; não se expunha ao
escárnio e ao desprezo.
Era bela!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse.
O ônibus parou; uma outra senhora ergueu-se e saiu.
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi
uma sombra passar diante de meus olhos no meio do ruge-ruge
de um vestido, e quando dei acordo de mim, o carro rodava e eu
tinha perdido a minha visão.
Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada,
ou antes suspirada quase imperceptivelmente:
-- Non ti scordar di me! ...
Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda;
andei como um louco até nove horas da noite.
Nada!
II
QUINZE dias se passaram depois de minha aventura.
Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagân-
cias que fiz.
Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para
ver se encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os
passageiros se a conheciam e não obtive a menor informação.
Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com
uma paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer
vinte milhas por hora.
Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e
um chapéu de palha que não lhe desse caça, até fazê-lo chegar
à abordagem.
No fim descobria alguma velha ou alguma costureira des-
jeitosa e continuava tristemente o meu caminho, atrás dessa
sombra impalpável, que eu procurava havia quinze longos dias,
isto é, um século para o pensamento de um amante.
Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um
homem que ama uma mulher e que não conhece a mulher que
ama.
Recostei-me a uma porta e dai via passar diante de mim
uma miríade brilhante e esplêndida, pedindo a todos aqueles
rostos indiferentes um olhar, um sorriso, que me desse a co-
nhecer aquela que eu procurava.
Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava
junto de mim, quando senti um leque tocar meu braço, e uma
voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava dentro de
minha alma, murmurou :
-- Non ti scordar di me!...
Voltei-me.
Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim,
e apenas vi uma velha que passeava pelo braço de seu cava-
lheiro, abanando-se com um leque.
-- Será ela, meu Deus? pensei horrorizado
E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam
destacar daquele rosto cheio de rugas.
A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento
que devia atrair a simpatia; mas naquele momento essa bele-
za moral, que iluminava aquela fisionomia inteligente, pare-
ceu-me horrível e até repugnante.
Amar quinze dias uma sombra, sonhá-la bela como um
anjo, e por fim encontrar uma velha de cabelos brancos, uma
velha coquette e namoradeira!
Não, era impossível! Naturalmente a minha desconheci-
da tinha fugido antes que eu tivesse tempo de vê-la.
Essa esperança consolou-me ; mas durou apenas um se-
gundo.
A velha falou e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo,
apesar de mim mesmo, o timbre doce e aveludado que ouvira
duas vezes.
Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu
tinha amado uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com
delírio, tinha vivido quinze dias de sua lembrança.
Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem en-
louqueci, mas fiquei com um tal tédio e um aborrecimento de
mim mesmo que não posso exprimir.
Que peripécias, que lances, porém, não me reservava ainda
esse drama, tão simples e obscuro!
Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ou-
vi a sua voz; foi só passado o primeiro espanto que percebi o
que dizia.
-- Ela não gosta de bailes.
-- Pois admira, replicou o cavalheiro ; na sua idade!
-- Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas e
nisto mostra bem que é minha filha.
A velha tinha uma filha e isto podia explicar a semelhan-
ça extraordinária da voz. Agarrei-me a esta sombra, como
um homem que caminha no escuro.
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